2006-07-30

Músicas do Mundo




Foram três dias intensos, de grande desgaste. A vinte sete entrei pela porta do Castelo de Sines para rever velhos amigos, os Gaiteiros de Lisboa com as suas vozes de cancioneiro. Entre cervejas, vinhos e cheiros, trazidos pela nova geração que frequenta os festivais, aproximei-me do palco para melhor ouvir Joachim Kuhn, pianista alemão, que juntamente com Rabih Abou-Khalil, Libanês, excelente executante do alaúde, e um baterista americano, me proporcionaram uma hora e meia das arábias. Deles recordo o magnifico dialogo entre o piano intimista e o som limpo do alaúde. A primeira noite acabou com Toumani Diabaté mestre da Kora (Harpa de vinte e uma cordas, com origem na Africa Ocidental) e os ritmos quentes do Mali. Este senhor, que tal como eu nasceu em 1965, a meio do concerto ainda teve tempo para nos explicar o instrumento. De uma forma pausada e num inglês meio estranho disse-nos do ritmo e exemplificou, juntou depois a melodia e por fim a improvisação, altura em que o instrumento parece explodir num intricado sistema sonoro. Com ele a Symmetric Orchestra composta por elementos de vários países que na sua origem fizeram parte do império do Gana. Cheguei a casa por volta das quatro, desistindo do último espectáculo que se realizou na praia e dedicado a todos aqueles para quem a noite não tem fim.
No dia seguinte fui jantar com o jota, o meu parceiro destas andanças. Tal como no dia anterior dirigimo-nos à Flor de Sines, mas estava cheio. Como alternativa escolhemos o Zé Beicinho onde tentamos antecipar emoções e revemos as anteriores. O alinhamento previa que a festa no Castelo terminasse com Thomas Mappuno & The Blacks Unlimited do Zimbabué, mas motivos alheios à organização não permitiram que isso acontecesse. Em consequência deste facto a noite começou com uma desconhecida iraquiana, mulher imponente da cidade de Carbala e que nos trouxe uma voz potente que habitualmente seria pertença masculina no agrupamento, como fez questão de salientar o apresentador. Depois os esperados mas inesperados The Bad Plus. Com uma formação que lhe faria adivinhar outro estilo (Piano, contrabaixo e bateria) navegaram entre o jazz e o rock deixando-nos muitas vezes sem perceber o estilo, mas em grande estilo. Magnifica a versão de Chariots of Fire, descompassada, desconcertante, resultou em pleno no palco e cativou toda a gente. Para o fim o melhor de tudo o que ouvi, talvez porque adore percussão ou porque a pessoa em questão se chama Trilok Gurtu (A Downbeat magazine proclamou-o por três vezes "best percussionist" e afirmou "musically, the world is his stage". O Jazz magazine, tomou identica posição escrevendo, "this music has a transcendental quality and removes any obstacles that lie between western and eastern improvised music.”). Este extraordinário percussionista que já tocou com nomes insuspeitos como David Gilmour ou Jonh McLaughlin também já o fez com os Portugueses Mário Laginha e Maria João no álbum “Cores” em 1998, por sinal um dos melhores álbuns da dupla. Olhando os seus parceiros, The Misra Brothers, percebia-se que a musica tradicional indiana iria ser o prato forte, mas o que não esperava foi a empatia entre a sua percussão, a sua voz e o público. Ele sozinho é o espectáculo, das suas mãos saem sons inimagináveis sem pátria. O que um balde de água e um a tampa podem fazer? Perguntem-lhe! Falou com o público, provocou diálogos musicais entre batidas e palmas, salientou a honra que deveríamos sentir por ouvir os seus dois cantores, deu lugar à “sitar” (espécie de guitarra indiana), à flauta, ao “Sarangi” (algo parecido com um violoncelo, mas sem as suas formas de mulher e bastante mais pequeno de modo a se poder tocar sentado no chão), ao “Santoor” que um velho senhor arranhava enquanto soltava a voz num acompanhamento uno.
Voltei a falhar o concerto na praia, mas desta vez não por falta de vontade…Ia a um casamento. Ainda pensei em lá ir sábado à noite, mas já estava um bocado mal tratado??!! Nada de grave se parasse por ali e foi o que fiz.
Escrevo isto no domingo, a música lavou-me dos contratempos, a tempo de me sentir muito feliz.


P.S. Experimentem ir ao site das músicas do mundo, vale a pena, essencialmente pela informação musical. Um abraço a todos.

2006-07-26

Relato de um começo de dia infeliz

Acordei triste, deprimido. Não foi por falta de sol, o trabalho não apertou, os meus colegas sorriram e brincaram comigo, cheguei cedo e estou a escrever. Foi uma tristeza de dentro, por dentro do que tenho a resolver. São geralmente dias de decisões importantes, dias em que é preciso fazer alguma coisa e não necessariamente a mais correcta. Tirei dois dias, que raio de expressão! Tirei a quem? OK, meti duas folgas! Meteste-as aonde no c….? Adiante que não é esse o tema. Planeei algo, mas como tudo o que se planeia não se pode ter certezas. Parece-me bem, gostava de ir e chega a altura tudo vira…Apetece-me precisamente o contrário. Dizia o bom do António que “Eu só estou bem onde não estou, eu só quero ir aonde não vou…”, talvez fosse só isso, mas não…Não somos donos dos acontecimentos, maestros do destino. Executamos tarefas, algumas simples, outras complicadas, que nos deixam a ilusão de comando. Estou sentado, toca o telefone e vou atender, situação perfeitamente banal, pergunto quem é, do outro lado respondem-me, tudo normal, a conversa começa e finda-se e fica a dúvida, o encontro. Preciso falar contigo…Esta mensagem, ouvida por telefone em tempo real, é um presságio cinzento. Passaram dois anos, quase três e a situação está meio resolvida. Nunca deixem uma situação por resolver, mais cedo ou mais tarde ela acaba por aparecer e muitas vezes em grande estilo. Podia ter pensado nisto outro dia, logo hoje que vou ver “as músicas do mundo”, mas a cabeça de um homem é mesmo assim e as lembranças aparecem quando menos se espera…Nada de anormal…
Mas fez-me bem escrever, enquanto o faço decidi não desistir…Vou abraçar toda essa música que espera por mim…

2006-07-24

Nocturna



Espera por mim
Nesse bairro antigo.
Vou a caminho,
Procuro um amigo.

Trago na alma
Aquilo que sou.

Do que me julgo,
Do meu interior,
Revelo janelas,
Caminhos de amor.

Sou pecador
Honesto e honrado!

Fui Homem direito,
De espinha torcida.
Eu Nasci no fado
Vergado na vida.

Tenho uma camisa
E cinco centavos.

Trabalho de noite,
Descanso de dia.
Talvez o horário
Me deixe encontrar-te.

Tudo o que tirei,
Já não tinha dono

Procurei por ti,
Na esquina, na escada
Sem saber quem eras,
Se estavas marcada

Fugi da rotina,
Com calças lavadas

Ó virgem Maria,
Mulher mãe, mulher vida!
Tu não existes para mim,
Nas ruas feitas de sida.


Soube hoje o que sabia,
Que não esperaste por mim.



Subi sozinho a calçada,
Que me leva até ao alto.
De lá vejo quem amo,
Dormindo à beira da estrada.

2006-07-21

À Borda

Em Julho o dia diminui. Em Lisboa trinta e sete minutos e no Porto quarenta e um minutos, no resto do país não se deram ao trabalho de fazer as contas, talvez não fosse necessário, nós que vivemos de referências essas deveram bastar. Segundo o “Borda D’água” é altura de ceifar e debulhar, boa para semear feijão verde e alfaces antes dos primeiros frios de Inverno. No final do mês será a vez da cenoura, do rábano, da salsa e de outras plantas com necessidades iguais. A leitura do que se deve ou pode fazer não pára e acaba fazendo um apelo à prevenção dos fogos através da limpeza das matas, bosques e florestas.


A manhã estava boa, não se via o sol mas a temperatura era agradável, muito por causa de uma ligeira brisa que soprava de nordeste. Percorri a via rápida até à saída da Ribeira de Moinhos, dez quilómetros mal medidos, esse desvio que nos leva à zona industrial vindos de Santo André. A estrada é obrigada, numa argola fechada, a atravessar a via de origem num ângulo recto para o lado esquerdo. Em seguida um entroncamento de asfalto novo. Do lado direito a Petroquímica, a fábrica de resinas do Belmiro logo a seguir, na curva que alinha a estrada com o eixo Norte /Sul. Mais à frente o “negro de fumo” da Carbogal. Ligeira curvatura e logo uma rotunda, depois um cruzamento que dá para a Metalsines.
Nesse cruzamento vislumbra-se a silhueta arquitectónica da refinaria. Segue-se em frente, talvez para a melhor imagem que se obtém do complexo, cruzando por cima a outra via rápida, aquela onde desagua o IP8,vinda de Santiago, direcção Este /Oeste. Desse viaduto percebe-se o planeamento, à direita depósitos, ao meio os serviços, por detrás as unidades de processamento e a Central lideradas pela chaminé principal com os seus duzentos e quase cinquenta metros (não se lhe adivinha o tamanho até estarmos perto dela). Um pouco ao lado, deixando antever uma grande avenida, existem dois riscos na paisagem, dois enormes queimadores onde se consome o excedente gasoso da produção petrolífera, duas enormes válvulas de escape com queima e mais de cem metros de altura. São elas o que primeiro se vê quando se faz a viagem de noite, indicadoras do estado de saúde das fábricas que compõem a refinaria. Um olhar sobre o fogo que cospem e saberemos se existem problemas. Uma chama baixa, óptimo. Uma chama amarela e crescida, muito calor. Chama grande com muito fumo, queima-se a carga por questões de segurança, talvez seja preciso parar. Não se adivinha tudo mas dá para ter uma ideia.


Chegaram a estar mais de quarenta graus trazidos por um vento doentio. O céu, cor de sépia, trazia aguaceiros com terra. As grandes árvores junto à estrada abanavam com violência, deixando cair os seus ramos mais frágeis. Pequenos remoinhos surgiam do solo para logo desaparecerem. De repente o vento parou. O céu, no fim da tarde, tentou-se azul. Já sem tempo para o conseguir.


Vamos a caminho da Lua Nova. Segundo as previsões do almanaque esse encontro realizar-se-á dia vinte cinco.

Até quando os encontros certos? Esperam-se almanaques de mudança...

2006-07-19

Uma reflexão sobre a escrita…



Resposta às angústias, necessidade de marcadores, referências, lugares de onde se pode olhar o passado e refazer o futuro. É isso a escrita? Invenção de vida, acto reflexo do que choca connosco, consequência passada para o papel? Da prosa à poesia, passando pelo simples desabafo, projecto, comentário, lamento, de tudo se escreve. É global e abrangente e dependemos dela todos os dias, a identidade cultural depende dela. Actualmente é digital, mas não deixa de ser o que é. Como acto artístico, não depende da raiz tecnológica. A escrita depende da vida, desde sempre a quisemos. Foi um dos maiores feitos da humanidade. Foi repetida vezes sem conta, teve as formas mais diversas, cada povo inventou-a à sua maneira, vítimas de uma necessidade comum, poderemos chamar-lhe instinto? Depositámos o passado na sua verdade, na sua interpretação por entendidos. Construímos a nossa vida por herança genética e escrita! Quer a gente queira, quer não!
Eu comprei o jornal e li, eu li o jornal que não comprei, eu ouvi de quem leu o jornal, eu ouvi de quem ouviu, mais cedo ou mais tarde a informação chega. Eu li, eu sei quem leu, alguns dirão, eu escrevi e também li. Partindo do pressuposto que ninguém está completamente isolado, poderemos separa-nos em três grupos, os que escrevem, os que lêem e os que ouvem. Óbvio será que muitas pessoas pertençam simultaneamente aos três grupos, mas o que também será óbvio é o facto de o último grupo estar isolado. Quem a ele pertence, embora com muito para contar, dependerá sempre dos outros para o registo dessas histórias. Tenho muito carinho por quem me conta essas experiências, gostaria de ser seu portador, guardar o seu testemunho, criar a ilusão da eternidade para esses homens e mulheres que não a sabem, não a entendem…São vencedores de gerações difíceis, o estudo era um bem supérfluo, um acessório, alguém o faria por eles. Alguns sabem que assinaram papéis, que aprenderam a fazer a assinatura, outros ainda utilizam o dedo. Não mendigam oportunidades para contar, antes esperam pacientes pelo ouvinte certo, aquele que lhes inspire a memória…E depois falam…São histórias e mais histórias, sempre de tempos difíceis que quem não aprendeu a ler nem a escrever tinha de trabalhar no duro. Hoje sobrevivem de reformas insignificantes sem perceberem bem o que os atingiu. Ouvi-los e guardar esse passado decerto que traz outra versão da nossa realidade, nossa de todos, uma versão que sistematicamente gostamos de meter debaixo do tapete…”É tão depressivo!”.
Não! Não acordei iluminado pelo Espírito Santo! Também não foram problemas de consciência, apenas revolta de não poder levar o mundo às costas…Faz-se sempre o que se pode, não é?!?!...
Fica no entanto a observação, o alerta, ouçamos essas pessoas antes que desapareçam…É tão simples…Basta ouvir…Que cada um de nós registe a sua memória, nem que seja por breves momentos de lembrança, dar-lhe-emos certamente algo mais que a nossa atenção. Quanto a nós ficaremos decerto mais valiosos, mais humanos.
Não levem o assunto demasiado a sério… Foi só uma reflexão que quis partilhar…

2006-07-17

Solidão


Mais um fim-de-semana em casa, de volta à mãe. Há trinta e dois anos que volta sempre para ela. A cidade que tanto o fascinou, agora não lhe diz nada, precisa de amigos…Onde estão?
O trabalho vai andando, esse novo trabalho que tanto o entusiasmou dois anos atrás.
Acabou o curso em Coimbra, tarde, que bom seria o tempo parar…
…Nas férias recorda-se da sua infância, voltavam a estar juntos, como quando a ribeira enchia cortando-lhes o caminho para a escola.
Alguns casaram, o Romeu, a Madalena, o Júlio, o “Andorinha”, a Isabel, foram ficando cada vez menos, a cada regresso menos caras conhecidas. Aprendeu novas amizades, mas também esses se foram, para fora, como ele, estudar, trabalhar…Alguns ficaram, casaram, outros ainda continuam bêbados, agarrados a uma juventude, perdidos entre o horário de trabalho e a “Noite”.
“Mãe, vou passear o cão!”, “Com este calor?”, “Não te preocupes…Levo o chapéu!”, “Vens para o lanche?”, “Sim mãe!...”
O Romeu é pai vai para dois anos, ainda não está casado de “papel” mas é como se estivesse. Vem, com a companheira e o filho, está um bocado e vai-se embora. Um dia convidou-o “Aparece lá em casa!”, “Eu apareço!”…Mas não é a mesma coisa.
Meteu a Rosa no carro…Basta abrir a porta. A cadela deve o nome a uma namorada que o deixou…Foi no dia a seguir que a comprou, tinha dois meses. De Rosa passou a Rosí e cresceu, a sua “pastora”.
Entrou no café, o Gabriel estava sentado com três garrafas de cerveja, chamou-o e indagou “A tua mãe disse-te?”, “O Quê?”, “Que estás convidado para o meu casamento…E para a despedida de solteiros.”, sorriram, cada qual com seu motivo, “Vais casar?!?”, “Algum dia tinha de ser!...”.
Do grupo só falta ele, de todos só ele vem para casa sozinho, dormir com a mãe. Sente-se isolado, domingo à noite volta para a cidade, “Mãe, arranjaste-me a mala?”, “Sim!...E carreguei-te o telemóvel.”.
Passou o período de experiência e a visita de três meses à fábrica no Brasil também é passado. Foram três meses loucos…Trouxe uma tatuagem com o Sol…E um piercing no mamilo…A mãe não lhe falou durante umas semanas, só o essencial, à distância, “Estás bem?”, “Estou!”, “Precisas de alguma coisa?”, “Não!”, Vens cá no fim de semana?”, “Sim!”, “Adeus!”, “Adeus mãe!”,
Depois ficou a rotina…E dois companheiros do trabalho. Tem um apartamento em Almada mas não janta em casa. Sai tarde e come qualquer coisa onde calha. Espera pelos dias de folga que já não lhe trazem segurança, alegria, quanto muito descanso.
Domingo à noite diz, “Hoje quero dormir cá em casa! Vou amanhã de manhã!”, “Queres que te acorde às cinco?...”, “Sim Mãezinha! Obrigado…”.
Em silêncio, à noite, chora. Um choro sem convulsões, duas pequenas lágrimas e acabou…

2006-07-15

Almoço rápido



Na mesa do canto,
Com vista para o mar.
Meio jarro de tinto, o prato do dia,
Entradas e pão.
O pão pede manteiga!
O queijo não tem companheira!
Talvez a faca olhe para ele de outra maneira,
Ela que é tão meiga…

A travessa espera no seu lugar,
Alguém que a agarre.
Pega-lhe a cozinheira
Que deixa escorrer,
O suor pela cara,
O molho por cima,
Marcando território.

Assim como o vinho que ajuda a amar
A marca de gordura que deixo no copo,
Revela os lábios que lhe tocaram,
Mas nada diz sobre o seu efeito.

Na geleia cor de morango,
Enterro o metal da colher.
No prato o resto treme,
Enquanto engulo um pedaço

Bica e meio…E o cinzeiro.
Olho pela janela.
Nos ouvidos o som de talheres.
Na mesa ao lado fala-se de mulheres,
De bola, carros dinheiro.
Espero mais um pouco.
Não gosto de fugir da mesa…
…De longe o empregado diz que sim,
Que vai já fazer a conta…

2006-07-13

Falando do mesmo

E a propósito do comentário do meu amigo AD e da maneira como ele o finaliza aqui divulgo um pequeníssimo excerto do livro de Saramago "O envangelho segundo Jesus Cristo".

Que me desculpe o José pelo abuso de confiança, mas não deixa de ser uma forma de o relembrar, a ele e à sua forma tão peculiar de nos fazer ver a realidade...Prometo não repetir...

"Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados,
Como as borboletas, falenas e outras mariposas,
E ao fogo nos lançaríamos,
Nós todos,
A espécie humana em peso,
Talvez uma combustão assim imensa,
Um tal clarão que atravessando as pálpebras cerradas de Deus
O despertasse do seu letárgico sono,
Demasiado tarde para conhecer-nos, é certo,
Porém a tempo de ver o princípio do nada,
Agora que tínhamos desaparecido."

2006-07-12

Desacelerei

Desacelerei, o limite é de 70 quilómetros por hora, vou à procura de promessas, vai devagar que os teus direitos estão já ali! Não, não vou chorar, implorar perdão, ainda não matei ninguém! Primeiro foram os outros! Enquanto forem os outros…
A nova lei pede-me para reduzir…Para cinquenta quilómetros! As auto-estradas… na altura deram de comer a muita gente, gente que ainda come. O concerto do famoso, BB King no Casino…Para quantos? Com o Rui Veloso? (Eu que sabia o “ar de rock” de trás para a frente)
O mal é antigo…Estou quase parado…Vou a vinte…Quilómetros…Já não saio de casa…Não tenho dinheiro, mas tenho democracia! Oportunidades iguais! Pelo menos agora posso falar…Posso? Claro que posso! Não é o que estou fazendo?
Parei! Não tenho mais gasolina! Despediram-me…Podem-me ajudar?…
O mundo não pára e possivelmente todas as salas de espectáculos estariam cheias amanhã.
Meti a marcha-atrás! Não sei para onde vou e está escuro…Está ai alguém?
Todos nós sabemos que a voz que se queixa não é apelativa, incomoda, chateia, tira-nos o sono. Tanto do conhecimento que nos é interdito por razões monetárias, a descriminação existe a vários níveis…Podes sempre ver a fotografia na banca dos jornais, nas mesas de café, mas nunca tocar, essa é a cenoura, o objectivo.
Tenho o carro avariado, está na oficina. Estou parado já há algum tempo! Quem me vai aceitar nesta situação?
Na estrada o sinal indica o limite de velocidade, 70 quilómetros… Estou sentado à beira da pista, espero a minha vez. O trânsito contínuo dificulta o acesso, o ponteiro não sai do zero. Veio a Mia Farrow a Lisboa, muitos convidados…O Paulo Portas fala com a dita cuja, convidados…Com o meu dinheiro. Por acaso até vi um filme com ela que gostei muito…”Rosa Púrpura do Cairo”…Não tem nada a ver…
Tanto que eu gostava de ver, todos esses heróis que me ensinaram a viver…É tudo muito caro!
Vês a casa do outro lado? Sim aquela ali ao fundo, já lá morei…Tudo isto era meu! No meu sonho tudo era meu!
Pude entrar primeiro nas salas e nos átrios iluminados, pude saltar e brincar sem ser empurrado, observar num vagar de quem gosta, aplaudir!
Limito-me à rua de entrada, sei que a democracia é isto, uns têm, outros não, mas todos podem falar. Eu falo mas não escrevo, quem escreve é este outro, um tal de p. guerreiro. Eu não tenho voz publicada, sou aquele que se queixa, que lembra o deslocar da riqueza, à espera da maré que foi e não veio…Continuo à beira da estrada…Alguém que pára! Dá-me boleia?
Fiz isto a pensar na descriminação monetária e porque um amigo “virtual” postou algo sobre o preço dos bilhetes para o Chic Corea. Pelo direito à indignação!

2006-07-11

História de uma derrota



Caminhei pelo passeio até ao fundo da rua, estreita, húmida, e segui em frente. Podia ter virado à esquerda, à direita, mas não, fui em frente.
Sabia o caminho, assim como sabia que tinha de pedir um táxi, ás seis…Horas…
Entrei. Pedi desculpa e entrei, e sentei-me. O espaço estava vazio, frio, traga-me uma…Cerveja! Esperei enquanto observava o empregado, vagaroso, o cuidado, o chegar ao balcão…Entregou e recebeu, agradece sem olhar. Lá fora a manhã prepara-se para nascer…
Foi em 1984 e estava na praia, fomos a prolongamento e perdemos e nem por isso o sol deixou de se pôr, lento, mergulhando na água com um braço de fora…Adeus!
A viagem foi calma, rápida, as artérias lisboetas estão desimpedidas e a cidade cansada. Trago a bandeira na mão…O coração deixei-o lá…Em frente ao ecrã!
Repetiu-se em 2000…Para o Europeu. Também prolongamento, de repente uma mão…Mão?!?!? Não acredito!! Ninguém acredita! Chora-se, berra-se, protesta-se, jura-se vingança…E a bola lá dentro, no fundo da rede, a confusão, os insultos, os cartões, a bandeira debaixo do braço, o café vazio…
Desta vez foi na rua…Com o sol a morrer… E com ele a esperança, guardada vinte e dois anos…Ainda pensei ir logo para casa…Mas vi tanta gente triste…Bebi por eles e por mim e por Portugal e por mais umas tantas razões.
Estou a chegar, já vejo a cama, é esta a altura em que me interrogo, “Porquê? Porquê este sofrimento, esta angustia?” e descubro que estou feliz, que me sinto fazendo parte de alguma coisa, mesmo na “desgraça”, talvez um dia seja pela causa certa…


P.S. Não é autobiográfico mas identifico-me com o espírito.

2006-07-09

Fuerteventura


O Miguel fala com paixão da sua ilha, explica-nos que Fuerteventura não é só areia, é terra, “Terra com outras cores, terra africana”. E realmente assim é, tonalidades que variam do castanho-escuro quase negro até ao amarelo das praias, passando pelas suaves misturas destas duas cores. Mas engane-se quem pensa que a paisagem é suave, só os seus traços nos deixam essa ilusão. Feita de velhos vulcões e caldeiras partidas chegou a ter mais de três mil metros de altura. Hoje, após milhões de anos de erosão não passa dos novecentos metros no seu ponto mais alto, resto de uma brutalidade que só o choque da placa atlântica com a africana podia provocar. É a mais antiga em termos geológicos e isso sente-se. “As Canárias devem a vida aos ventos Alísios”, “Sem eles a temperatura em Fuerteventura estaria sempre entre os quarenta e os cinquenta graus” alerta Miguel. São eles que trazem toda a humidade, incluindo a chuva, para que durante um pequeno período toda a terra se revista de uma frondosa verdura que chega a atingir os dois metros, “paradisíacos os campos de margaridas e papoilas que revestem esta velha terra vulcânica entre Abril e Maio”, depois vem o Verão e tudo seca. “Esta ilha já foi verde, tão verde como a ilha da Madeira.”, fala de mil anos atrás como se fosse ontem…E recua no tempo, fala-me de Hércules e de um dos seus trabalhos, aquele em que foi preciso ir buscar duas maçãs de ouro ao paraíso, a umas ilhas, às Canárias. Fala-me também dos Romanos que trouxeram escravos brancos da derrotada Cartago, e dos cães que com eles vieram para os guardar e obrigar a trabalhar, os mesmos cães que multiplicados em número impressionaram um General Romano a ponto de este lhes chamar ilhas dos cães ou Ilhas Canárias.
Oitenta por cento da população não é de Furteventura, “Houve um êxodo enorme no tempo de Franco”, proibiram o abandono destas terras e para elas trouxeram todo o tipo de marginalizados, comunistas, intelectuais incómodos, homossexuais, ladrões. Isto não evitou que muita da população migrasse para a Venezuela, Argentina, Cuba e outros países da América do sul (a maior parte dos seus actuais habitantes são originários da Galiza da Venezuela e do México, que fizeram a viagem em sentido inverso para trabalhar no turismo). Esta ilha que chegou a ser o celeiro das Canárias está agora reduzida à produção de tomate, devidamente protegido dos ventos por tendas que mais parecem estufas embora não seja essa a sua finalidade. Existem muitas cabras, do seu leite faz-se um dos melhores queijos, premiado várias vezes em Espanha e uma das suas imagens de marca. Também existem dromedários, trazidos pelos povos árabes que dominaram durante alguns anos estas ilhas e que serviam como transporte perfeito num terreno de difícil acesso.
Fuerteventura é a ilha mais comprida do arquipélago, aproximadamente cem quilómetros desde Punta de la Tinosa, no norte, até Punta de Jandía, no sul. É a segunda maior em tamanho com uma área de 1660 quilómetros quadrados. É também a que fica mais perto de Africa. São menos de noventa os quilómetros que separam Punta de la Entallada de Cabo Jubi em Seguia-el-Hamra, Sara Ocidental. A norte Lanzarote fica a dez quilómetros separada por um estreito que não ultrapassa os 45 metros de profundidade. Nesta ilha, além do Saramago encontram-se vulcões activos que nos anos vinte cobriram mais de um quarto da sua área com lava obrigando à evacuação da mesma.
Fuerteventura deve o seu nome aos marinheiros portugueses, que por lá navegaram no século XIV. Assim lhe chamaram devido aos ventos fortes e que fazem da ilha um local de eleição para uma das provas do campeonato mundial de windsurf. Esta prova realiza-se nos finais de Julho, altura em que os ventos são bastante intensos, “Só para profissionais”, garante-me Miguel. A costa Atlântica chega a ter ondas de sete metros e não se aconselha a sua utilização para tomar banho. Por sua vez a costa oriental é onde se concentra a maior parte do turismo da Ilha, sendo a melhor altura (ventos mais fracos) em final de Setembro, princípio de Outubro. Turistas? “Muitos alemães, também ingleses, italianos, espanhóis…Portugueses? Poucos!”.
Miguel é crente, em Deus, nos anjos, nos santos, nos curandeiros…”Uma vez torci um pé e tive dores horríveis, fui a vários médicos que me previram quatro semanas de convalescença. Decidi ir a um curandeiro, pastor de profissão, cego, não demorou mais de meia hora com sebo de cabra e algumas orações.”. Contou-me que o pastor tinha cegado primeiro de um olho, enquanto ordenhava uma cabra e que passados quinze anos outra cabra lhe levou o outro olho. “Hoje tudo é diferente, vendem-se bocados de terra por milhares de euros”, novos-ricos, novas vidas. A urbanização vai avançando, à margem da lei arrasam-se velhas caldeiras vulcânicas para da sua cinza se fazer material de construção (Imagem terrível ver um destes monumentos terrestres partidos pelo meio vendo de lá sair camiões com as sus entranhas). Com um curso superior, obrigatório para se ser guia, divide a sua vida entre o trabalho e o estudo da sua ilha. Aparenta ter cinquenta anos, vividos entre vários países. Tem um filho de quinze anos, da sua primeira mulher (Fruto da sua permanência em Singapura durante três anos), faz esta confissão enquanto afaga o cabelo da minha pequena Mariana, “Já não o vejo há muito tempo…Mas esta vida também tem coisas muito boas…”
Ouviu-o com muita atenção e fotografei…Nenhuma fotografia consegue ser fiel ao relato das suas palavras, “Não existem paisagens feias ou bonitas, apenas paisagens…Tudo depende de quem olha!”, sentenciou-me.
Obrigado Miguel!

P.S. Tanto que ficou para dizer do que me contaram… (sempre falámos cada um na sua língua, por isso talvez haja algumas pequenas incorrecções, mas nada que um bom livro de história e geografia não corrija)