2006-08-30

Um conto em três páginas (b)

2ª página

Não chegou a responder-lhe…Sentia-se contrariado naquele restaurante, todo ele etiquetas e regras, gente de estatuto repousava por entre mesas e cadeiras sem levantar a voz, apenas um murmúrio comum a todos eles. A refeição foi lenta e muitas das perguntas que trazia guardou-as para mais tarde, era óbvio que o professor não estava interessado em falar no assunto. Mas não comeram em silêncio, Adamantino Gomes, assim se chamava o professor, questionou-o sobre o vinho “Um néctar! Do melhor que o Alentejo produz.”, dissertou sobre vinhas e lagares, seguiu em frente tecendo comentários sobre as tendências sexuais de duas mulheres que jantavam numa mesa ao lado e acabou no futebol, altura em que pediu dois cafés e duas aguardentes velhas, “Da especial!”. O nosso pintor, Leonel Marques de seu nome, estava enjoado de tudo, o seu estômago não estava habituado as estas excentricidades gastronómicas…Minto, desculpem…Do vinho ele gostou! Mas dizia eu que ele estava enjoado, farto intoxicado de todos aqueles cheiros. Suspirou de alivio quando Adamantino pediu a conta. A viagem até casa foi curta. Além do quarto o senhorio deixava-o usar as águas furtadas onde ele trabalhava. Só de dia se via bem, pela excelente clarabóia, de noite duas lâmpadas encaixilhadas faziam um serviço muito aquém do desejável. Entraram devagar naquele lugar quente e saturado de diluentes e tintas. Acendeu as luzes e esperou…esperou, até que…”Sim senhor, fizeste um óptimo trabalho.”, “A sério!?”, “Pelo que tenho de mais sagrado, está realmente muito bom, deste-lhe vida., “A quem?”, “…A tudo…O cliente vai ficar muito contente. Quando posso levá-lo?”, “Daqui a uma semana, mais ou menos…Eu depois telefono-te”, “OK! Se te achares capaz posso trazer-te mais uma foto quando cá voltar, queres?”. Enquanto falava o professor ia mexendo na carteira, contando notas, grandes notas, “Pode ser!...”. Respondeu hipnotizado, recebeu o dinheiro e esqueceu tudo o resto, inclusive as perguntas que tencionava fazer. Foi uma semana maravilhosa, pagou as dívidas e conseguia finalmente andar motivado, sem vergonha, sem medos. Até a dona Laura reparou “Só te falta uma boa mocinha.”, “Deixe-se disso dona Laura, agora é tempo de trabalho, de alcançar um sonho, o meu sonho.”, “Olha que nem só de sonhos vive o Homem, ouve a Larinha que já cá anda há um bom par de anos.”, “Tabém mamãaaa!”, “Não gozes comigo!”, “Um beijo?”. Despediram-se a sorrir.
Essa semana passou, o quadro foi entregue ao professor, recebeu uma nova fotografia e mais uma vez as perguntas ficaram por fazer. Desta vez um canto de um quarto com uma janela. Debruçada sobre essa janela uma figura feminina de costas para o observador. Percebe-se o cabelo escuro ligeiramente ondulado sobre um simples vestido azul de abotoar pelas costas, como nas fardas das meninas do supermercado ou das empresas de limpeza. De qualquer forma é um vestido ligeiramente acima dos joelhos deixando ver umas pernas bem feitas, nos pés uns ténis pretos com riscas brancas. A luz cénica vinha do exterior, pela janela e talvez de uma porta aberta por detrás de quem observa. Os pormenores não eram muitos mas sentia-se inspirado e rapidamente surgiram sinais de que a coisa andava. Não o fez numa noite como o primeiro, perdeu mais tempo, misturou técnicas, preocupou-se com detalhes da mulher, com a luz nos seus cabelos, com a sombra na farda. Ao fim de três dias ainda estava a acabá-lo. Mais uma noite em claro, que raio de mania…Trabalhar de noite.
De manhã e pela primeira vez nesses três dia foi tomar o pequeno almoço na dona Lara.
“Bom dia dona Lara.”, “Bom dia menino. Que é feito de ti que não te deixas ver?”,
“A trabalhar dona Lara, a trabalhar.”, “Queres uma tosta só com queijo e um galão bem quentinho?”, “Pode ser dona Lara…Obrigado.”. Pegou no Correio da manhã que jazia aberto numa mesa vazia e começou a folheá-lo até se deter fixamente na página oito.

2006-08-28

Um conto em três páginas

1ª página

Tinha trabalhado a noite toda numa enorme tela, encomenda de gente rica, gente que ele não conhecia. O seu antigo professor tinha tratado de tudo, até do dinheiro para as tintas. Havia um ano que vivia de esmolas, de retratos a lápis de cor à porta das zonas turísticas de Lisboa. O quarto era pago pela namorada que o deixou após um ataque de nervos. Depois disso conseguiu que o senhorio aceitasse como pagamento o seu trabalho na pintura da casa, “Se você é pintor deve conseguir pintar paredes?!”. O prazo estava a esgotar-se quando encontrou por acaso o seu professor de desenho, “Ainda és capaz de fazer alguma coisa? Consegues assumir um compromisso?”, respondeu que sim, de cabeça baixa olhando para as calças que não viam água há muito tempo. O que tinha de fazer era relativamente simples. Mensalmente chegaria às suas mãos uma fotografia que teria de reproduzir com total liberdade de estilo. Única restrição, a composição teria de ser mantida, não poderia trocar ou ignorar objectos, fossem eles inanimados ou não.
A primeira fotografia mostrava uma mulher deitada de bruços numa cama de casal. A cama estava coberta com um lençol que também cobria a mulher adivinhando-lhe as formas. Nada mais se via naquele quarto iluminado de vermelho por duas luzes cuja origem não era visível. Desenhou-a a carvão, com traços ambíguos e dispersos tal qual a sua vida, a sua e a dela que parecia tão desprotegida tão sossegada. Abriu os tubos novos de tinta e aplicou-os directamente na tela. Só depois o ambiente surgiu, estavam lá as paredes, a cama, a mulher e os lençóis, um por baixo a tapar o colchão quanto ao outro já lhe fizemos referência. Como achou o vermelho demasiado agressivo substituiu-o por uma luminosidade branca que projectava sombras distintas num soalho de madeira que ele próprio inventara, algo que não se conseguia distinguir na fotografia. Agora que acabara sentia-se bem, liberto de tenções, de conflitos, conseguiu até sorrir à vizinha que o detestava. Na rua dirigiu-se para o café da dona Lara onde costumava tomar o pequeno almoço e onde mantinha uma conta por pagar. “Bom dia dona Lara. Já chegaram os jornais?”, “Estás muito alegre hoje, não me digas que acordaste cedo para ir trabalhar?”, “Não goze dona Lara. Não tenho tido sorte mas as coisas vão virar, vai ver. Para começar vou poder pagar tudo o que lhe devo assim que entregar o que estive fazendo.”, “Um quadro suponho!?!”, “Sim um quadro…E poderão ser mais!”, “Deus queira que sim meu filho.”. A dona Lara adorava aquele moço franzino de cabelo desgrenhado e barba por fazer, adorava acima de tudo aqueles olhos verdes que lhe davam uma expressão tão parecida à do seu Ricardo morto quatro anos antes por uma overdose de heroína.
Sentou-se ao pé da janela e folheou o Correio da Manhã. Leu os assaltos, aos bancos, às velhinhas, aos jovens namorados junto ao rio. Prendeu-se na notícia do desaparecimento de uma menina de 11 anos na cidade de Bragança. Pais pobres, casa pobre e mais cinco para cuidar, “Tragam-me a minha menina!”, na fotografia a imagem de um pai destroçado e de uma mãe que não consegue olhar a objectiva escondendo a cara entre mãos. Mais à frente noticiava-se o aumento da gasolina, por causa do petróleo, por causa do Irão, por causa da energia nuclear, por causa da bomba, por causa….Ficou-se pelas palavras cruzadas enquanto trincava uma tosta só com queijo.
À tarde telefonou ao professor e combinou com ele um encontro. Este convidou-o para jantar, “…Depois logo vamos ver a encomenda.”, “À noite?”, “Achas que preciso da luz do dia?”

2006-08-26

Horas extraordinárias

Começa pela focagem, esse acto reflexo de quem olha. A dificuldade aumenta com o passar das horas, o corpo pede descanso e intelecto desiste, as funções vitais são mantidas através de um gerador reservado à sobrevivência. A ida à casa de banho, o levantar da tampa da sanita, abrir a breguilha das calças, despejar, voltar a fechá-la, lavar as mãos e ir embora. A água que está dentro do copo de onde veio? Bebe-se por necessidade, para satisfazer uma necessidade. Fui eu que enchi o copo? Devo ter sido...O tempo passa e começam a tremer-me as mãos. Não! Não bebi café nem tomei nada, são apenas vinte e oito horas sem dormir. Falam comigo “Trago as garrafas, onde queres que as ponha?”, sim, digo que sim a tudo para não ter de pensar na negação, “Tchau, até logo”, sim, sim, claro que sim, que horas são? Ninguém me ouve, já se foram embora. Eu também quero ir embora...Sinto arrepios de frio, as pálpebras parecem lixa, vou molhar os olhos, o alívio é momentâneo, desisto, por alguns instantes entrego-me à escuridão. Sei que passaram alguns segundos mas a claridade desorienta-me, levanto-me para não dormir, já só faltam duas horas...Devia pedir um táxi...Um dia fico na estrada...ou melhor dizendo, fora dela. Fumo mais um cigarro, mais de metade é consumido na brasa, sem ter de ir à boca. Olho para ela e vejo-a avançar pelo filtro dentro. Sinto calor nos dedos e apago-o.
Vou-me despir. A roupa sai lentamente com esforço. Estou sentado, só de cuecas, numa cadeira do balneário. A minha roupa pendurada no armário espera, mas eu não me consigo mexer. Não sei como mas estou cá fora, já piquei o cartão e procuro o carro no parque da empresa, não me lembro em que fila ficou, são duas da tarde de um dia qualquer. Para mim não existem horas, nem dias da semana, nem fins de semana.
Chego a casa...Amanhã não vou trabalhar...Que dia é amanhã? Ninguém me responde, estou sozinho, apetecia-me a minha mulher, a minha filha....Deito-me na cama e tiro os sapatos...Não me lembro de mais nada...

2006-08-22

Repetição




De frente a uma cadeira
Balanço-me nos veios da madeira.
Repouso os meus pés cansados
No seu assento polido.
Ó tempo que a usaste,
Gostaste da minha cadeira?
De frente ao móvel da sala
Avalio os seus defeitos.
Amigo, velho amigo
Como o tempo te tratou.
Já vos disse que me importo?
Procurá-los quando chego,
Saber que esperam por mim.
Mais um dia que passou.
Serão quatro paredes uma prisão?
Ventre do meu embrião?
Refúgio, toca, abrigo, asilo, recurso, amparo,
Sinónimos que não chegam para explicar.
Viver num universo com fronteiras
E fim!
Um fim igual a todos os outros…
Para depois recomeçar,
Defronte a outra cadeira,
Com outros veios usados…
Onde repouso os meus pés.

2006-08-20

Primeiro Amor

Deixo-te, mas levo um pedaço de ti. Guardo-o cá dentro onde o posso recordar sem ninguém ver. Os anos tiraram a nitidez da imagem, poliram a cara que tu foste e fizeram-te eterna. Para dizer a verdade eu não te deixei, tão pouco tu me conheceste, foste uma paixão, daquelas que não se quer estragar com a banalidade de quem assume uma relação. Ainda hoje sinto o teu cheiro...Tinha dez anos...E tu? Um pouco mais velha creio eu. Nunca procurei ficar na mesma carteira, partilhar o mesmo espaço no recreio. Ficava de longe, embalado pelos teus gestos de menina a crescer. Eras alta, muito mais alta que eu e tinhas um casaco de malha, branco. O que eu procurei por esse casaco...Soube que moravas na Reboleira, no Edifício Oeiras, aquele enorme prédio com mais de dez andares, referência da zona sul. Apesar dos avisos da minha mãe passei horas à espera de te ver sair, “Paulo, não vás lá para baixo, estás a ouvir-me?”, claro que te ouvi mãe, mas que podia eu fazer? Segui-te sem tu saberes com aquela pasta castanha pendurada nas minhas costas. Levava lá dentro tudo o que era suposto eu aprender, só não trazia a explicação para o meu desassossego. Assim a carreguei durante dois anos, juntamente com a minha obsessão. Foi no final do segundo ano que o encanto se perdeu...Custou-me a acreditar...O meu amigo Rui trazia-te pela mão. Falaste-me pela primeira vez e eu sofri. Durante alguns dias mal comi e a escola tornou-se um pesadelo, eu que acordava sonhando encontrar-te no meio daqueles pavilhões onde sujavas de pó branco os sapatos com presilha. O Rui nunca soube o que eu sentia. Continuei a ir a casa dele para estudar e via-o atender o telefone e adivinhava quem estava do outro lado, “Vou lá abaixo, queres vir?”, “Hoje não!...A minha mãe precisa de ajuda,”. Via-o seguir o mesmo caminho que eu secretamente havia percorrido dezenas de vezes. Nessas alturas nunca fui ajudar a minha mãe.
Passaram tantos anos e a minha memória guardou-te um lugar…Ao sol…
Também tu me ensinaste a amar …Obrigado!

2006-08-16

Em que pensas?


O António vive em frente de uma esquadra da polícia. Conhece bem todos os sons, das sirenes, dos gritos, do chiar dos pneus. Portas que se abrem e fecham, gente que entra e sai agitada. Tudo o que é ilegal e clandestino desagua à noite naquele local. Às vezes senta-se junto da janela, de cigarro na mão, só a olhar, de luzes apagadas.
Num desses dias viu chegar uma mulher embrulhada num casaco. Trazia uma saia curta que lhe deixava a descoberto umas pernas excessivamente brancas e nos pés uns chinelos, à primeira vista dir-se-ia que tinha saído à pressa de casa. Aproximou-se da porta da esquadra e falou com o agente que lá se encontrava. Este, sem tirar a mão direita da metralhadora à tiracolo, indicou-lhe com a mão esquerda uma direcção no interior do edifício. Viu-a hesitar antes de entrar, ajeitou o casaco, compôs o cabelo e decidiu-se. Demorou apenas alguns minutos e saiu...De cabeça baixa...
Distraiu-se naquela figura magra, seguiu-a com o olhar perdido. Num momento deu-se a imaginar o seu drama, a urgência do apelo, que necessidade faria uma mulher vir à polícia às quatro da manhã?
Pela janela vê que ela se sentou nas escadas de um prédio. Baixa a cabeça…E chora?...
Observou-a com a atenção de quem tinha sido seduzido e sentiu pena daquela tristeza, daquele corpo rendido. Assim se deixou estar durante muito tempo. Seriam cinco da manhã? Olhou para o relógio...Cinco e meia...E ela no mesmo sítio. De repente uma ideia passou-lhe pela cabeça. Levantou-se devagar e foi à casa de banho onde jogou água pela cara e lavou os dentes. Pegou nas chaves de casa e antes de sair confirmou a sua presença nas escadas. Não estava frio, as manhãs de Verão embora húmidas são agradáveis. Deliciou-se com a ligeira brisa e acendeu um cigarro. A saída do seu apartamento era oposta à janela, por esse motivo teve de percorrer a rua, atravessar o túnel e virar numa curva apertada antes de a ver. Pensou no que lhe queria dizer, ele que nunca se sentiu à vontade para meter conversa. Dormitava, tinha um olho negro e várias marcas nas pernas. “Quer ajuda?...”, silêncio “Desculpe...Precisa de alguma coisa?...” e nada. Ficou ali de pé um momento, sentinela esperando uma reacção. Estava quase a desistir quando ela deu sinais de despertar...Olhou para ele e assustou-se para logo se acalmar, “Pensava que fosse ele...” desabafou aliviada. “Desculpe...”, “Não faz mal.” Respondeu levantando-se. Agora percebeu que a conhecia, não pessoalmente mas de vista. “Eu conheço-a, você mora na rua do café central!”, “Eu também me lembro de si...”. Convidou-a para tomar o pequeno almoço e ela aceitou desabafando “Desde que ele não veja...”. Fingiu não ouvir e acompanhou-a enquanto esperava que ela rompesse com o silêncio que se havia instalado. Isso só aconteceu depois da barriga cheia. Contou-lhe dos cinco anos de casamento, do filho de três, do marido que lhe batia todos os dias, o choro desaparecera e as palavras saiam sem rancor, apenas mágoa, “Amei-o tanto…”, “Ainda gostas dele?”, “ Acho que tenho pena dele.” E continuou, “A maior parte das vezes são só uns estalos mas ontem abusou, tive de fugir. Ainda fui à polícia...Mas depois de entrar perdi a coragem...”. Ofereceu-se para a levar a casa, ela recusou, “Está lá com uns amigos...E amigas...”. “Queres ir tomar um banho?”, “A tua casa? Estás doido! Se ele soubesse matava-nos aos dois.”, “Não tenho medo!”. O que se passou depois é algo que só a eles diz respeito, a solidão de um abraçou o desespero do outro e amaram-se num diálogo feito de gestos e carícias. Era já tarde quando ela acordou, descansada de tudo enlaçou-lhe o peito com os braços. Ele de barriga para cima olhava para o tecto e chorava silencioso, “Em que pensas?”, “Em ti!...”, “E choras?”, “Sim…Pela mulher que tu és, pelo carinho que me deste…Agora que não estou só tenho medo de te perder.”. Quem se calou foi ela…”E tu que estás pensando?”, “Que quando me for embora deixarei cá o meu sorriso e um pouco do que já fui”.


P.S. Do resto da história não sei, mas gostava que tudo corresse bem para os dois.

2006-08-14

A Verdade

Ter tanto para dizer,
Sem ninguêm para entender.
Ter tanto para escutar,
Sem haver quem me contar.
Nas lágrimas que chorei,
Com as palavras que cantei
Entendi o frio e a chuva de Inverno,
E o valor de tudo o que é Materno.

A verdade é uma arma,
Se ao dizê-la tu entregas a alma.
Só se ouve uma vez,
Não se divide por três.
Das vezes que a contei,
Do que me lembro e que eu sei,
Fiquei entregue ao destino,
De quem o diz sem ser menino.

Ontem eu acreditei,
Hoje já não sei...
Ontem foi outro dia,
Uma imagem que morria.
Hoje falo por falar,
Lanças, farpas a jogar,
Ontem vi-me e eu venci,
Hoje estou onde morri...

Certa é a voz que me guia,
O cão que me ladra,
O mando de quem manda

Certa é a dor que me volta,
O caminho sem estrada,
A incerteza do destino que roda.

2006-08-10

Justiça

Releio as ruas da cidade e observo-lhe os números. Os pares de um lado, os impares do outro, olhando-se de frente, agora vou eu à frente a seguir vais tu. Procuro o número 164, mas podia ser outro qualquer. As lojas mais antigas fecharam e só os cafés conseguem manter a clientela. Junto às campainhas bonitas placas douradas anunciam doutores, dos que curam doenças, físicas e mentais, mas também os há para outro tipo de problemas, os judiciais. Vou no número 145 e decidi atravessar a rua para ficar em sintonia com os pares. Tenho dificuldade em alcançar o passeio ocupado por automóveis tristes do abandono desleixado dos seus donos. Alguns têm as “orelhas” dos espelhos recolhidas, encolhidos no pouco espaço que lhes calhou. A borracha dos pneus forçando o lancil, os faróis tentando alcançar as fachadas dos prédios, em espinha, em qualquer posição, esperando pacientes pela hora de regressar à estrada, para a última viagem do dia, igual à primeira mas em sentido contrário. Cheguei! As escadas são bonitas, de mármores claros transpiram frescura. Ao balcão o homem fardado de uma empresa de segurança pergunta-me ao que venho, respondo-lhe um nome com Dr. antes. Solícito o homem faz questão em me acompanhar até às escadas que dão para o elevador, explica-me que é a terceira porta do lado direito, junto ao escritório do Sr. Arquitecto fulano de tal, “Não tem nada que enganar!”. O elevador é silencioso e transporta-me rapidamente para o piso que pretendo. Ao sair deparo-me com um enorme corredor, sigo as indicações e rapidamente encontro o meu destino. Será realmente o meu destino? Procuro alguém que me explique as leis, que me diga aquilo a que tenho direito, reconheço a minha dificuldade em utilizar o manual de instruções do sistema judicial que me rege. Do outro lado explicam-me o complicado da questão, a lei oferece várias interpretações...Só uma é favorável. E eu que pensava “Ou sim ou sopas”, “Pão! Pão! Queijo! Queijo!”, fico triste e confuso. Para já o que é certo é a justiça custar dinheiro. Quanto mais se paga mais portas se abrem, opções que saem dos livros como por magia, “Esteja descansado que nós vamos encontrar uma solução.”. Não fiquei descansado, entrei com uma dúvida e sai com muitas mais. Procurava um sim ou um não, uma resposta que me fizesse arquivar o assunto, ingénua ilusão, o que têm para me oferecer é subjectivo, acabei por não perceber se tinha razão, se valia a pena. Só descansei quando senti o ar fresco na cara, mesmo misturado com combustível queimado foi o melhor que me podia ter acontecido. Enquanto procurava a entrada da estação do metro ia avaliando as pessoas. Estes servem-se da lei, aqueles são usados por ela, mais ao fundo, alguém no chão pedindo, não sabe o que isso significa. Dizia um governante que o sistema judicial deveria estar mais próximo do cidadão, que deveria haver uma relação de confiança. Hoje eu não senti essa proximidade, essa confiança. Percebi também que o português utilizado nas leis é sinuoso e que os advogados são uma espécie de marinheiros naquele mar de palavras com múltiplos sentidos. Será que tenho dinheiro suficiente para levar isto até ou fim ou será melhor desistir?
Reli as ruas até chegar a casa e parei no número dezassete...O dia valeu pelo passeio....E pela reflexão....

2006-08-07

A Terra

A Terra sacode-se, derrama-se sobre si mesma,
Lava-se de males milenares,
De angústias humanas, tremores tecnológicos.
Purifica-se para de novo retornar,
Limpa de tudo…

A Terra agita-se e revolve-se em águas e ventos…
E mata, não perdoa a quem lhe faz mal,
A quem lhe quer roubar o destino.
Quer-se nova de novo
E nessa renovação destrói a pele velha,
Já gasta, envelhecida de nós e por nós.

A terra deixa-se queimar
O fogo que deu a vida também a há-de matar.
E vê os fogos dos homens
Vê os homens sem futuro.
Um destino que é mudo,
Que não nos deixa pensar.

2006-08-04

Urgência


Urgência (Balada do 112)


No escuro sou escuro,
Tenho acessos divinos,
Revelações concretas,
Espaços abertos.

Esta noite tenho vida!
Na negra de pele negra,
Eu vou nascer!
Do falso nas mentiras,
Eu vou ouvir!
No azul que não existe,
Eu vou viver!
Na verdade que me solta,
Tenho vida!


Esta noite tenho vida!
Do que está para vir,
Eu quero prazer!
Do sonho que foi novo,
Eu vou fugir!
O tempo, se o vi,
Não vou esquecer!
De tudo o que é belo,
Tenho vida!

Esta noite vou ter vida!
Do prazer eterno,
Vou ter vida!
Do podre e do triste,
Vou ter vida!

E se assim penso,
E nela acredito…
…Preparo-me e entro…

(Adaptação recente de um poema escrito em meados de 90, só pelo gozo que me deu fazê-lo.)

2006-08-01

Vivemos de mentiras

Ouvi de alguém esta pertinente questão: “Quantas vezes tu mentes, omites, falseias durante o dia?”. Quem a fez não queria uma resposta numérica, pretendia sim uma reflexão sobre as nossas relações com o exterior. Quase sem dar-mos por isso vamo-nos moldando às situações habituais e mentimos. Ás vezes fazemo-lo de boa fé, só para agradar, mas existem outros motivos. Os sociais por exemplo, que nos fazem ter conversas pelas quais não temos interessem nenhum, e que nos mantêm presos a relações pouco importantes. Os de necessidade primária, quando tudo está em risco e não se olha a meios. Os que derivam da ambição, geralmente tortuosos. E isto são apenas grandes grupos, é só pensar um pouco e facilmente descobrimos que toda a nossa sociedade é montada no encobrimento, na falsificação, na mentira. Dizia Al Pacino no Padrinho III que quanto mais tentava sair da podridão subindo socialmente e investindo de forma legal, maior desonestidade encontrava. Nunca tive essa experiência vivida de perto mas todos os dias me mentem pela televisão, pelos jornais, quem sabe pela rádio também. São as meias verdades, as armas químicas, a ameaça nuclear (como se fossemos nós que tivéssemos inventado aquela merda e a tivéssemos utilizado por duas vezes), a luta contra o terrorismo… O ódio que provocamos com a nossa Ocidental falta de respeito pelos outros povos levou-os à miséria. Muitos submetem-se, outros preferem sucumbir abraçados a religiões que eu não entendo (Os países árabes são donos de um negócio que não controlam e de uma filosofia de vida desconhecida. Morre gente por toda a região, vítimas das armas de uma indústria que não morre).
Somos inundados por omissões, histórias fabricados, encobrimentos, despistes, bastará olhar talvez para os nossos mega julgamentos. Perguntamos agora por que não nos disseram a verdade antes. Porquê tanto tempo para nos dizer que fomos roubados, ao de leve, ao longo destes últimos vinte anos de sonho Europeu, nós que queremos ir em bicos de pés servir de intermediários nas guerras dos outros. Onde está a moral? Numa ilha qualquer dos Açores onde se decidiu uma invasão? Poderão dizer-me que eram governos diferentes…Mas o nome é o mesmo…Portugal!
Porque não havemos nós de mentir? Que exemplo temos nós dos representantes democraticamente eleitos? Dos lideres religiosos? Dos ditadores de conveniência?
Qualquer uma das nossas mentiras seria minúscula comparada com as suas.
Sou Ocidental não tenho medo de reconhecer o meu desconhecimento pelo Oriente. Quanto mais leio mais baralhado fico. Tive a arrepiante ideia de ler “ARAFAT a pedra que os palestinianos lançaram ao mundo” de Margarida Santos Lopes. Um sucessório de mortes, traições, jogos, interesses internacionais com dezenas de anos. Dizia-me um médico que a partir de uma determinada altura um cancro degenera invariavelmente na morte, “É preciso um diagnóstico precoce, atacar o mal logo que seja detectado”.
Este problema, herança dos antigos impérios europeus desfeitos no pós guerra, surge da forma pouco educada como os Judeus fugiram para Israel…Mas quem os pode condenar…A Europa que quase os aniquilou? A Igreja Católica que os ignorou?
Á pergunta inicial eu respondo, vivemos de mentiras, por elas sofre e morre muita gente no mundo. Hoje mostram-nos o Líbano…E amanhã?