2006-11-29

Branco...




Branco…Eis o meu testemunho em branco…
A minha parede roubada.
Escrevam nela a revolta, a vontade de viver.
Um abraço muito grande a todos os que lutam para ficar entre nós!

2006-11-27

Por vezes estamos sem fazer nada...

Por vezes estamos sem fazer nada, preguiçosos da vida, preguiçosos de tudo. Levantei-me tarde, quase uma, e liguei o computador. Quase embalado no ruído do arranque da máquina, olhava para o ecrã. O ambiente de trabalho, os atalhos, os ícones…E eu adormecido, olhando as palmeiras de uma viagem às Caraíbas, quase sentindo o calor e a humidade daquele entardecer. Passaram alguns segundos, ou terão sido minutos? Não sei! Passou um pouco daquilo a que chamamos tempo…Quando não está a chover…Se estiver a chover o tempo é mau…Que merda de tempo…Chuva e vento e…Não estou a falar desse tempo…Desculpa…Onde é que eu ia?...Estive por momentos distraído de tudo, sim eu sei que liguei a máquina, mas liguei-a sem objectivo definido, talvez só para a ouvir trabalhar, agora que penso nisso até me parece um bom motivo, para de me interromper! Está bem…Levei a mão ao rato…Ao quê?...Já te disse para não me interromperes! Podes ficar ai, dentro de mim, mas sossegado, está bem?....OK!
Liguei-me à net, Homepage, favoritos, alguns blogs e a minha irmã a recordar-se e eu a recordar-me, não com as suas recordações, com outras, minhas, de outras pessoas, de mim, de mim em casa com vinte e tal a ouvir música, sempre a ouvir música, já vos contei que tive um baixo assinado para me expulsarem do prédio…E isso interessa…Cala-te!...Sim a ouvir música e um dia toca-me à porta o João Paulo, era visita da casa, assim como muitos outros, amigos, amigas, eu vivia sozinho mas tinha a casa cheia, morava ao pé de locais de encontro e quando esse não acontecia a campainha tocava. “Quem é?”, “Sou eu!”, a voz familiar, hoje alegre e satisfeita, satisfeita por voltar a Portugal depois de umas vindimas no sul de França que não correram muito bem. “Entra, estava a fazer uma.”, “Tens mil paus?”, “Para que queres os mil paus?”, “Tens ou não tens?”, “Tenho!...”, “Dá-me lá os mil paus e não me faças perguntas…Eu venho já!”. Tinha confiança no João Paulo, havia respeito na nossa relação, identificávamo-nos nas revoltas, ânsias, ambos sem mãe…O que é que isso interessa?...Na altura interessava e ajuda a compreender a história. O João Paulo não tinha mãe, o pai era tenente coronel ou coronel e tinha uma irmã mais nova. Não gostava de estar em casa, vivia para o dia, se possível pedrado…Mas era o que todos faziam, ou quase…Porra cala-te! Deixa-me acabar que depois falo contigo.”. Adiante! Demorou uns vinte minutos até que voltei a ouvir a campainha, um dling-dlong fraco porque precisava de pilhas novas. Entrou radiante com um disco debaixo do braço, “Agora sim podes fazer-me uma!”. Dirigiu-se para o gira-discos sem me deixar ver a capa, escolheu uma música, levantou o som e inundou-me a casa de “Blues”, aquele blues do Texas, branco e acelerado, “Isto é Gary Moore, um gajo que foi guitarrista nos Thin Lizzy, agora toca Blues, conheci isto em França.”. “Texas Strut” era o nome da faixa…E ainda é…Estou mesmo lixado contigo…
Ouvimos o álbum todo e repetimos alguns temas, lembro-me de mim…Novo…A sentir-me velho ao ouvir “As the Years Go Passing By”.
O João Paulo Morreu já há alguns anos, de overdose, vivia com uma moça bonita, as cores de Timor na pele, na Venda Nova, às portas de Benfica.
Viu-o a última vez na estação dos comboios da Amadora, eu já trabalhava cá em baixo, tinha partido o carro e tinha de ir de camioneta. Bebemos umas cervejas e demos um abraço, gostava de lhe ter dado um abraço maior, “Vê lá se apareces.”, “Quando tiver carro é mais fácil, eu prometo.”, promessa que não cumpri, que nunca pensei cumprir, eu que fugi de Lisboa para fugir do Mundo e de mim, por isso está calado!
Isto saiu-me mesmo assim e agora que estou acabando não sei se o deva postar…Não foi para isso que o começaste?...Foi, mas descambou e também por tua culpa!...Deixa-te de merdas, posta isso e vai almoçar…Desta vez tens razão…

2006-11-22

Manias

mania (Lat. mania, proveniente do Grego mania, loucura), substantivo feminino.

Espécie de perturbação ou excitação caracterizada por aferro a uma ideia fixa;

(fig.) Mau costume; excentricidade; esquisitice; extravagância; desejo imoderado, excessivo.

Agora que estou de posse de todos os dados posso responder de forma honesta ao desafio que me foi lançado…

Primeira – Tenho a mania que sou de esquerda (Espécie de perturbação ou excitação caracterizada por aferro a uma ideia fixa).

Segunda – Ainda fumo, ainda bebo, ainda… (Mau costume).

Terceira – Gosto de me isolar e andar ou então fechar-me e não falar com ninguém. São fases, manias (Esquisitice).

Quarta – Tenho um desejo imoderado, excessivo por música.

Quinta – Imagino-me várias pessoas (Excentricidade).

Foi o que me ocorreu perante a definição de “mania” encontrada no Dicionário Universal da língua Portuguesa (Texto Editora).
Muito mais ficou por dizer como seria de esperar perante a abrangência da palavra.
Possivelmente todas as outras manias têm dias, umas vezes são, outras não.

Um abraço à Isabel

2006-11-20

Caminheiro (O adeus)

Durante seis meses e até a obra acabar arranjaram sempre maneira de se encontrar a sós. A princípio momentos breves, o desejo era mais forte, depois as confissões, os passeios junto à ribeira, o risco que aumentava.
“Sabes que fui violada quando estudava em Lisboa?”, cabeça baixa, cabeça alta, “Percebes? Tudo me correu mal.”. E ele escutou a história daquela noite, “Ele e os amigos…Os cabrões…Chorei tanto…”, a humilhação, os olhos negros, as escoriações no corpo, “Nunca mais fui a mesma…Tive de abortar, na altura era difícil e fiquei muito mal…Mas mesmo assim sobrevivi e consegui ter um filho do Pedro.”, “Gostas dele?”, “Gostei…Precisava de alguém…”, “Serei eu uma repetição?...”, “Não! Actualmente não estou tão frágil.”, “Talvez estejas mais amargurada…”, “Que sabes tu disso?”, “Estive preso quinze anos…Matei um homem…Por amor ou despeito ou outra coisa qualquer que me tirou o sono até eu lhe acabar com a vida.”, “Mataste um homem por amor?...”, “Por amor a uma mulher…Á minha mulher.”, “Foste…Traído?...Desculpa…”. Neste momento choravam os dois, em silêncio, com a água guardada nos olhos. “Perdi-os quando estava na prisão, primeiro o divórcio, depois o acidente…”, “Não vamos falar mais nisso…Vem cá…”, ele foi e tiveram-se como nunca se tinham tido.
A vida não é feita de felicidade ou infelicidade, a vida é feita de acontecimentos, eventos que nos colocam perante decisões, escolhas, das quais dependem outras que podem ou não interagir com futuros acontecimentos.
Foi este o caso. A principio o Pedro desconfiou, aquela súbita leveza e abnegação, mesmo quando lhe batia e violava, ele que tirava prazer do facto dela sofrer via com surpresa a cara sem expressão da mulher, quase um sorriso, um alheamento insuportável para ele. Mas o ciúme não o deixou dormir, uma dúvida de dentro, uma vontade de saber o que desconfiava e quase tinha a certeza, ele que conheceu tantas mulheres, algumas de outros. Seguiu-a num sábado depois de sair com um grupo de amigos e ter avisado que não vinha jantar. Nesse dia também o filho levou um beijo, não chegou a perceber porquê. Deixou os amigos por volta da hora do jantar, rondou a casa e viu-a partir, leve, ligeiramente apressada, quase saltitante…Apanhou-os, mas não teve coragem de aparecer, o outro era homem de trabalho, com o corpo treinado no desconforto da vida, seco, músculos fortes nas pernas e nos braços, sem serem grandes ou aberrantes intimidaram-no, a ele que tinha muita coragem quando estava bêbado ou acompanhado. Saiu humilhado daquela janela, daquele pequeno monte de uns amigos da Inês, do qual lhe haviam deixado a chave, “Para ver se está tudo bem, nunca se sabe!”. Chegou tarde a casa, depois de ter corrido todos os bares da região. Esteve com mulheres mas não conseguiu ir com nenhuma.
Inês ficou muito mal tratada, chegou a ir ao hospital onde ficou um dia antes de regressar a casa com um braço ao peito e um sem número de negras e vermelhões.
Não saiu durante um mês. Foi lá que soube de tudo o que havia para saber. A obra tinha acabado e aquele moço simpático que estava em casa da Dona Lúcilia tinha partido, o marido morreu uma semana depois, vítima de um acidente automóvel, o carro em que seguia capotou numa ribanceira e pegou fogo deixando irreconhecível o corpo do seu ocupante. Não foi ao funeral para ver os dentes que o identificaram…Deixou-se estar gozando do sossego, da paz e da saudade daquele homem. Centrou-se no filho, tinha finalmente hipótese de corrigir alguns erros…Desta vez não queria falhar…Que pena ele ter-se ido embora…Sem um beijo que fosse…
O nosso homem despediu-se dos comerciantes, aceitou farto farnel e partiu para sul, todo ele horizonte…Por fora…Por dentro a raiva e a determinação do que tinha para fazer. Esperou uma semana antes de agir. Dormiu em valados e terrenos ocultos, o farnel tinha que durar cinco dias pelo menos. Matou-o no parque de estacionamento de um bar. Tudo o resto veio dos anos de prisão, aprende-se muito, aprende-se também a ter paciência e alguns truques de honrosa marginalidade. Não se virou para trás quando deixou o carro a arder…Ainda ouviu a sirene dos bombeiros…
Inês recebeu a carta passados seis meses. Sem remetente exterior lá dentro dizia tudo…”Sou eu, amo-te…Espero que sejas muito feliz! Levo de ti um pouco do teu cheiro…O que um caminheiro pode levar…”.
Meteu a carta no correio no dia em que embarcou numa traineira em direcção à Mauritânia.

FIM!

2006-11-17

Caminheiro (A paixão)

Enquanto fazia massa trocaram olhares furtivos. Sentia-se curioso e atraído. Baixa, talvez não chegasse ao metro e sessenta, magra, cabelo castanho escuro, roçando o preto, solto e liso tocando-lhe nos ombros. As calças eram de ganga e ajustavam-lhe as formas, a T-shirt de número certo dizia qualquer coisa. As feições, meio menina, meio mulher, eram incertas. Ao longe e enquanto passava iam cambiando, alternando entre angustias e esperanças. Não teve tempo para ver mais, o trabalho tinha de ser feito e já alguém pedia tijolo. Ele e outro davam serventia a três pedreiros que erguiam paredes num primeiro andar. A meio da manhã pararam para uma cerveja e uma bucha, por volta da uma estavam a almoçar. Todos comiam na obra e quando ele disse que ia a casa não o deixaram abalar obrigando-o a sentar-se e a comer com eles. O mais velho sabia cozinhar e o pequeno estaleiro tinha fogão a gás, rudimentar mas eficaz. Nenhum deles era da terra, três das redondezas, ele e o outro servente de longe. O seu parceiro era novo e entroncado, alto e louro, eslavo por excelência, russo de passaporte tinha vindo de Estalinegrado, também lá tinha nascido. Dos outros três, dois rondavam os cinquenta e um parecia não ter idade, talvez tivesse parado por volta dos quarenta mas não era um número certo nem de confiança. Despegaram às seis, o encarregado veio buscar três com a carrinha, o russo dormia no estaleiro e ele em casa dos comerciantes.
Durante a primeira semana pouco mais fez do que dormir e trabalhar, mesmo quando chegava a casa e antes de jantar, ocupava-se a restaurar uma velha vedação de madeira que cercava o quintal. O banho depois da refeição era o acto final, a cama o descanso e a janela de céu negro e estrelado uma bênção, uma carícia. Antes de dormir deixava os olhos nas traves de madeira que escondiam aranhiços na penumbra.
Durante a segunda semana saiu duas vezes, à noite, com o russo e por convite deste. Fizeram a pé cinco quilómetros antes de encontrar um bar onde uma brasileira e três portuguesas faziam o que podiam para que um grupo de velhos agricultores mais abastados gastasse o seu dinheiro. O russo pagou e pelo que percebeu da segunda vez, havia qualquer coisa entre ele e a brasileira, mulata clara, jovem bonita de sorriso branco e aberto.
Pelo meio ficara-lhe a memória daquela mulher com o filho, memória revisitada todos os dias visto que o par atravessava regularmente aquela praceta. Um dia perdeu a vergonha e perguntou à Dona Lúcilia quem era aquela senhora que tanto passeava pelas ruas da aldeia. Menina fina, fora estudar para Lisboa mas nunca acabou nada, filha de um ricalhaço da terra, casou-se com um oportunista que lhe batia e a enganava nos negócios estourando-lhe o dinheiro que os pais lhes davam. Quem o queria ver à noite teria de procurar nas lanternas vermelhas da região. Sentiu pena daquela mulher, seria só pena? Talvez uma cumplicidade de sofrimento…Ou apenas ternura, paixão, calor… Num fim-de-semana de festa na aldeia arranjou maneira de se aproximar. A coragem não foi suficiente para meter conversa, mas os olhares que trocou com ela foram reveladores de um interesse muito maior que a simples atracção física. Ela percebeu isso e ficou perturbada mas de maneira nenhuma mostrou desagrado pelo facto, antes pelo contrário. Encontrava-se com outras mulheres, só a mais velha do grupo sentiu a inquietação na cabeça da amiga. Não seria hoje o dia indicado, talvez no café quando ela fosse à mercearia à tardinha.
Terça feira, seis e vinte, não trabalhou na cerca que só faltava pintar. Estava sentado no café e lia o jornal com uma cerveja na frente. Ela entrou como se esperasse encontrá-lo e sorriu quando o viu, “Boa tarde! Viu a dona Lúcilia?”, “Deve estar quase a vir, se quiser eu vou chamá-la…”, “Não é preciso…Eu espero…”. Esta espera que levou à conversa aberta, à apresentação formal, a um convite fora de horas…lá em casa…Paixão sem limite de carências contidas, desabafos, o retornar infindável dos corpos unidos pela ternura e pelo desejo.
(Só falta um...)

2006-11-13

Caminheiro (Decisões)

Sete e meia, talvez um pouco mais, um ou dois minutos. A indicação é fornecida por dois ponteiros num relógio de propaganda. A voz é amável, um pouco rouca, “Boa tarde!”, “Boa tarde!”, não sabe o que pedir, espera um pouco, o homem de avental espera também, “Vai beber alguma coisa?”, “…Sim…Uma cerveja.”. Não escolheu a marca, nem o outro o quis incomodar. Por detrás do balcão, como num passo de magia, aparece uma garrafa gelada, de caminho pega num copo. Faz a entrega e deixa o caminheiro em paz. Fez estes últimos quilómetros numa ânsia conhecida, paro, não paro, fico, não fico, distraiu-se com os pássaros, com o céu azul paraíso, azul imenso, sem fim, vai ser difícil decidir…Bebe a cerveja e ainda não sabe o que fazer. Junto à porta o dono do estabelecimento aprecia o entardecer. Na mercearia a mulher atende duas vizinhas. A mais nova observou com atenção aquele estranho. Ele apercebeu-se e sorriu sem direcção. Ela corou, acabou bruscamente a conversa, pagou e abalou apressada num aceno de urgência. Antes de sair olhou-o mais uma vez. Desta vez ele fingiu que não viu. Lembrou-se da mulher que amou, do filho que teria vinte anos se fosse vivo, mortes trágicas. Estava preso ia para cinco anos quando o padre o mandou chamar e lhe deu a notícia. Acidente brutal, corpos desfeitos, a fotografia veio no jornal, bombeiros, polícia. O jornalista falava de excessos, de velocidade, de álcool, “Segundo testemunhas a viatura em que seguiam as quatro vítimas mortais deu várias cambalhotas antes de se imobilizar e pegar fogo…”. Tinha-o deixado logo no primeiro ano de cativeiro…Desde ai nunca mais os viu…A sua família…
Quase oito, “Que fome…”. Pediu uma sopa, pediu carne e pão, meteu conversa e perguntou por trabalho, um quarto barato onde ficar um mês. Teve sorte com a comida e com o quarto, quanto a trabalho amanhã logo se veria. O casal, embora pouco falador, era simpático e deixava espaço para respirar, não o atropelou com questões profundas libertando-o numas águas furtadas por cima do café. O local tinha sido arranjado para poder ser alugado. Era asseado, simples, cama, mesa de cabeceira, cadeira, armário, um espelho de meio corpo. Pediu que o acordassem cedo, “A gente levanta-se às seis…”, “Pode ser…Obrigado e boa noite”, “Boa noite, durma bem!”, o desejo foi da mulher que o olhou com ternura, uma ternura materna de quem vê um filho cansado. Talvez a fizesse recordar algo.
Dormiu mal, não por culpa do quarto, mas por culpa da cabeça. Falaram-lhe numas obras da câmara, imaginou-se a rebocar, a fazer massa…Só um mês…Só para descansar.
O sol ainda não se via quando a mulher lhe bateu à porta, “Vou fazer o pequeno almoço, se quiser pode comer connosco, tem é de se despachar.”. Para ele a manhã era a melhor parte do dia, aquela em que se sentia melhor, com mais energia, recebia a luz matinal como uma bênção, aliviado da escuridão que o oprimia. Tomou um banho numa casa de banho que ficava no quintal, nas traseiras do edifício. Sentou-se à mesa depois de convidado, esperou que lhe oferecessem uma caneca de café com leite e duas torradas com manteiga caseira, comeram em silêncio. No fim da refeição o homem prontificou-se a levá-lo ao estaleiro. Ele agradeceu e aceitou o convite. A aldeia era pequena, casas brancas e térreas de ambos os lados da estrada principal ao longo de três quilómetros. Uma rua secundária, paralela, desembocava numa praceta onde iria ficar situado o posto da GNR, eram essas as obras. A apresentação foi breve, o capataz era amigo do comerciante e o contracto foi logo celebrado, “Começa hoje, amanhã tratamos dos papéis.”, Aceitou, agradava-lhe trabalhar, suar, parar de pensar. O trabalho não era muito pesado, o ritmo lento não cansava quem estivesse calejado de outros andamentos, talvez por esse motivo não parou de pensar. Recordou a imagem esguia daquela mulher de meia idade que tanto o tinha observado, coincidência ou não ali estava ela passando devagar, do outro lado da rua, com uma criança pela mão.
(cont)

2006-11-07

Caminheiro (A chegada)

As solas batem no cascalho, pequenas pedras que se enterram e empurram, cadência arranhada marcando o andamento. Na orla da seara a silhueta azul do caminhante é um risco harmonioso na imensidão aloirada. Desloca-se lentamente mas com convicção, movimentos decididos dão beleza a este andar. Começou às nove da manhã, como todos os outros dias. Pára por volta do meio-dia, para estudar o terreno e procurar uma sombra. Um sobreiro desnudado convida-o a sentar-se, tem no seu tronco um número pintado, sinal feito por quem o despiu. Ele aceita o convite, pousa a mochila de pano grosso, tem cor de tropa e está atafulhada de coisas, apanha um pouco de pasto e improvisa um assento. Deixa-se levar pela brisa quente do estio e quase que adormece, um ligeiro piscar que teima em ser pausa. De dentro da mochila tira um saco de supermercado, velho amarrotado, letras gastas anunciando uma superfície comercial. No saco um pano enrola duas fatias grandes de pão. Tira uma, corta-a ao meio e guarda o resto com cuidado. Ainda tem um pouco de toucinho, mas também este é dividido pela mesma navalha que cortou o pão. A sua amiga, única companheira de muitas refeições, mas não só. É habilidoso com ela e consegue milagres na madeira, verdadeiros prodígios em miniatura. Homem de mil profissões também passou por carpintarias, embora excelente na arte nunca a considerou como tal. Tem um cantil com meio litro de vinho, presente do taberneiro na última aldeia por onde passou. O trabalho na mesa da cozinha ficou bom e além do vinho e de uma farta refeição ainda ficou com algum dinheiro. Trabalha por onde passa, é assim há cinco anos, desde que…O dia está óptimo e convida a uma sesta, rende-se sem esforço, o trigo esfrega um no outro e embala o seu corpo, a sua cabeça, os seus olhos e por dentro.
Não usa relógio mas nunca adormece mais que duas horas. Desperta com calma, exercita as pálpebras e controla a quantidade de luz na íris, primeiro numa, depois na outra. De uma garrafa de plástico com água retira-lhe dois golos, o último mais demorado. Levanta-se e sacode-se das palhas que lhe serviram de enxerga. Novamente de mochila às costas decide-se por um caminho, um que o leva para o sul. Lembra-se de um comentador de televisão ter afirmado que a maior pobreza se encontrava no hemisfério sul e que o fluxo migratório dos seres humanos teria tendência para ser na direcção oposta. Também se lembra do que comeu, nesse café onde ouviu a notícia. Café familiar, acolhedor, sandes de pão caseiro com presunto, dois copos de vinho e um café. Ainda teve uma longa conversa com os donos antes de partir, chegaram a oferecer-lhe emprego, nada de especial, mas uma coisa limpa e honrada numa loja de ferragens de uns primos.
Vai para três horas de caminho. Há cerca de quinze minutos encontrou uma estrada asfaltada e segue pela sua berma. Pararam duas vezes para lhe oferecer boleia, à segunda aceitou. Chegaram a uma pequena povoação e ele apeou-se agradecendo a gentileza aquele homem do campo que o transportou na carrinha. Abeira-se do único estabelecimento aberto, café, mercearia, mini mercado, tudo junto. Lá dentro a separação é feita por pequenos arcos em alvenaria. Escolheu uma mesa para duas pessoas e sentou-se. Por detrás do balcão está um homem já bem entrado. Pouco cabelo, branco e curto, barriga saliente por debaixo do avental de plástico. Limpa uns copos, tarefa que o ocupa por breves instantes, só depois se dirige ao cliente.
(cont.)

2006-11-02

Dois dias de luta

Passaram vinte dias desde a reunião. As decisões foram tomadas, votadas, testemunhadas em acta assinada. O trabalho, as visitas à fábrica, os serviços mínimos, tudo necessita de discussão. A estratégia é definida com antecedência, os objectivos, onde se pode ceder, o que se pode aceitar. São dois dias de greve, dois dias em que deixamos de ser colegas, no grevista o contracto de trabalho é suspenso, deixa de haver hierarquia, quem manda é o piquete de greve. A greve começou às zero horas do dia dois de Novembro. Quinze e trinta, chove que nem cornos….Foda-se!...Vai entrar às dezasseis, turno da tarde. Na portaria um pequeno grupo discute, trocam-se papeis e opiniões, a fábrica I não parou, a fábrica dois “foi ao chão”, o ponto da situação, não há produto para Aveiras…O Porto parou? Cá em baixo ninguém diz nada.
“Como é que faço? Preciso de picar cartão?”, “Não! Não picas nada. Chegas lá abaixo e avisas a tua chefia.”
Para ele a pergunta é diferente, o costume…Continua a chover, está molhado dos joelhos para baixo, foca-se nas botas molhadas enquanto percorre a alameda encharcada. “Hoje não vou discutir, argumentar, não! Hoje vou entrar, dizer o que tenho a dizer e vir-me embora.”. A água é muita, o céu, escuro de um lado e branco do outro, distribui trovoadas, é impossível ser-lhe indiferente.
Hoje não há beijos nem abraços, apenas apertos de mão, formais, indiferentes. No sector são trinta, na greve ele e mais três…Só amanhã terá a certeza. Comprou o jornal, leu-o no hospital, não viu nada…Bem…Não o leu todo…Seria preciso?...
Não lhe interessa…A greve são dois dias, desta vez só precisa fazer greve, não precisa fazer mais nada…Mas não se sente satisfeito…Continua a chover…
Já saiu, até segunda, “Se precisarem de mim sabem o meu número”, não! Desta vez não estou disponível para horas extras.
Fala-se em oitocentos milhões de euros a serem distribuídos pelos accionistas, dinheiro não contabilizado em lucros nos anos anteriores…Fala-se em investimentos não garantidos, no futuro incerto depois da privatização, fala-se…Nos direitos! Nos deveres!
A estrada adivinha-se por debaixo do manto de água, o tracejado que divide as faixas serve de guia, as bermas não existem, sente o carro deslizar…Hoje não vou ligar a televisão, não preciso das notícias do mundo, hoje preciso descansar…