2007-12-14

O Automóvel IX

A carrinha atravessa a ponte 25 de Abril, sai de Lisboa e brilha, brilho de pintura metalizada que não veio de origem, brilha com o sol que pode ser de Verão, ou talvez não. O velocímetro regista o cuidado do condutor, sessenta quilómetros por hora. A distância de segurança que separa a carrinha do carro da frente é cumprida. O rádio está ligado, sem palavras supérfluas, só as canções têm direito a elas. A ponte já lá está, para trás, no sítio onde o passado guarda as coisas. Os pneus esborracham-se no asfalto procurando aderência. O ruído que eles provocam é contínuo, registo agradável que denuncia o contacto com o solo. A estrada é estreita, ladeada por árvores de tronco grosso, é noite e as luzes da Toyota procuram o caminho no meio da serra, guiam o corpo metálico pela estrada sinuosa, subida íngreme e constante. O Zé não conduz o carro. Vai no banco de trás, embrulhado numa manta. Está a dormir e agarra um cowboy mascarado de roupa azul clara. O cowboy ainda tem na mão o seu revolver, mas os seus vinte centímetros de altura não o ajudam na tarefa protectora. Para dizer a verdade é o Zé que proteje aquele homem armado de andar aos safanões dentro da carrinha. A carrinha que chega ao parque em frente à praia. A curva que rodeou as piscinas deixou-se ficar insinuando a saída. O mar está bravo, a espuma castanha revolta a areia espalhando-a com impulsos vários. O Zé sai da carrinha e corre para ao pé do pai, agarra-lhe a mão. A mãe olha para os dois e ri-se. O riso fica e dilui-se.
Xana entrou na cama devagar. Deixou que o corpo magro daquele homem se moldasse com o seu. Deixou que ele lhe chamasse mãe, acariciou-o, guiou-lhe uma das mãos para os seus seios e apertou-a. Diverte-a o facto do Zé não saber o que faz. Tão frágil, tão puro, tão diferente dos homens que conheceu, que conhece. Encaixou um dos joelhos do Zé entre as suas pernas, sorri satisfeita enquanto meneia as ancas com volúpia. Ele sonha, pede-lhe coisas que ela não percebe, não quer perceber. Perante os movimentos da mulher ele estende-se e encolhe-se em convulsões. Ela deixa-se embalar no desassossego do homem. Quase sem querer tem um primeiro orgasmo. Aperta-o um pouco mais e solta um murmúrio que não chega a gemido. O Zé continua sonhando, está bêbado e uma rapariga tenta despi-lo, ele resiste com pouca convicção. Sonha que ela lhe toca no sexo, agarra-o possessiva, movimenta-o, aumenta o ritmo. Sonha que a manda parar, grita-lhe para parar, tarde demais. O Zé acordou ainda a mão de Xana repousava, flácida, sobre o seu sexo de homem, despreocupada dos fluidos que provocara. A vergonha, o embaraço.

- O que aconteceu?
- Beija-me!
- O que é que fizeste?
- Beija-me!

O Zé obedeceu ao pedido, à ordem. Nunca se tinha sentido tão submisso. O beijo foi longo, Xana prolongou-o com carinho, depois adormeceu. Ele ficou sem sono. Estará ainda a dormir, belisca-se e solta um ligeiro gemido de dor, não era preciso exagerar. Até de madrugada não vai conseguir adormecer e só o barulho de viaturas em bruscas travagens e a porta do quarto a ser arrombada o fizeram levantar da cama.

(cont.)

2007-11-15

O Automóvel VIII

Ainda está no jeep. Daí a pouco entrará no quarto de Xana.

- Apetece-te alguma coisa?
- Deitar-me. Tenho o corpo dorido, sinto-me cansado.
- Queres comer? Posso trazer-te uma fatia de pão com manteiga, um chá, para enganares o estômago.
- Leite quente! Se tiveres um pouco de leite quente com café eu agradeço.
- Arranja-se. Mas tens de comer, nem que seja uma bolacha.
- És obstinada. Não sei se aguento até tu voltares.
- Aguentas. Para já vou buscar um pijama para ti.
- Eu posso dormir assim.
- Mas eu não quero! O pijama vai-te ficar largo, os meus irmãos são bem maiores que tu.

O Zé bocejou.

- Aguenta um pouco que eu venho já. Liga a televisão mas baixa-lhe o som.
- Para não os acordar?
- A quem?
- Aos teus irmãos.
- Agora sim estás a ser parvo.
- Não te esqueceste.
- É raro fazê-lo.
- Mas eu estou a falar a sério. Eles não vão ficar chateados por tu trazeres um estranho para casa, ainda por cima para dormir no quarto da irmã?
- O que eu acho é que estás com medo deles, ou então de mim.
- És capaz de ter razão. Não estou habituado a dormir na casa de outras pessoas.
- Não precisas preocupar-te, nós somos muito independentes. Vivemos juntos e sabemos defender-nos como família mas no que diz respeito às nossas relações pessoais não interferimos. Nem sei se eles estão em casa.
- E os vossos pais?
- Morreram, mas eu não quero falar nisso. Vou buscar-te o pijama.

Xana cortou assim a conversa, de forma rápida, abrupta. Saiu de cabeça baixa, com gestos desenvoltos mas de cabeça baixa. A morte dos pais ainda lhe pesava no coração. O Zé ficou sentado no sofá. Olhou para a televisão mas não teve coragem para a ligar. Tinha ficado com o comando na mão desde que pegara nele para se poder sentar, sem saber porquê não o largara desde então. Olhou depois para a cama, cama pequena para uma só pessoa e começou a preocupar-se, onde iria ele dormir, onde iria ela dormir. Sentiu um grande incómodo pelo desconhecido que a situação provocava. Ele que não gostava de ser pressionado a reagir. E a carrinha? A sua carrinha. Queria vê-la, amanhã de manhã seria a primeira coisa a fazer. Xana voltou a entrar no quarto com um pijama na mão, umas calças, uma camisola.

- Está amarrotado porque tive de o ir buscar ao cesto da roupa por passar a ferro. Mas tu não te deves importar com essas coisas. Veste-o enquanto eu vou aquecer o leite para ti.

Não o deixou responder, deu a ordem e voltou a sair. Que mulher, pensou o Zé. Sentia-se intimidado, frágil. Obedeceu, acima de tudo para não ter que justificar a recusa ou inacção perante a ordem da Xana. O pijama era realmente grande, duas peças, calças e camisola de um azul desbotado, comido de lixívias e detergentes. O tecido, de meia estação, não era desagradável mas não o conseguiu identificar. Deixou-se estar sentado boiando na roupa de um mano que não era o seu. Esteve assim um bom bocado até começar a ouvir vozes, de homem, primeiro, da Xana, depois. A voz do homem destilava bebida alcoólica, a da Xana, reprovação. Pareceu-lhe que discutiam. Ao fim de um bom bocado as vozes calaram-se. Sentiu medo que entrassem pela porta do quarto e o vissem naquele estado, farrapo humano, ressacado de medicamentos, tristezas e outros azares, vestido para dormir com roupa que não é sua, sem justificação credível para a sua presença a não ser a vontade de Xana. A vontade de Xana. Qual seria a vontade de Xana. Nesse momento abriu-se a porta e o seu coração quase parou.

- Desculpa a demora. O teu leite já deve estar frio, vais ter de o beber assim.

Esboçou um sorriso que não lhe disfarçou a preocupação estampada na fonte enrugada. Tinha um sorriso bonito.

- Não faz mal. Está tudo bem.
- O meu irmão mais velho está a cair de bêbado. Veio a casa buscar dinheiro e quer sair outra vez, vou ter de ir falar com ele.
- Espero que ele te ouça.
- Eu também.

Após esta sentença Xana apressou-se a sair do quarto mas antes lançou-lhe:

- Podes deitar-te na minha cama que eu logo me desenrasco.

O Zé não lhe respondeu. A cabeça doía-lhe. Bebeu o leite lentamente, não tinha café, não estava frio, não tinha bolachas. Rendeu-se à cama, devagar, por cima dos cobertores. Acariciou os lençóis e sentiu o odor de mulher. Num impulso lento, se tal existe, enrolou-se neles e assim adormeceu.

(Cont.)

2007-10-25

O Automóvel VII

Não dormiu no Hospital. O médico de turno conhecia Xana. Recomendou-lhe atenção. Muito embora os exames comprovassem normalidade, os inchaços na cabeça do Zé eram motivo para preocupação.

-Se ele se sentir mal, vomitar ou tiver dores de cabeça promete que me telefonas.
-Prometo!
-Eu não estou a brincar Xana.
-Eu também não senhor doutor, Jorge.
-Continuas sem juízo nenhum.
-E tu continuas com ele todo.
-Terá sido por isso que me recusaste?
-Não! É por isso que eu gosto de ti.
-Sempre com resposta pronta.
-Sabes como eu sou, não gosto de guardar nada para depois.
-Eu sei.

Jorge sentou-se por detrás da secretária. Xana fixou nele o olhar. Sentindo-se incomodado apressou a receita. Ela sempre o intimidara, desta vez também não foi diferente. Estendeu-lhe o papel quase sem levantar a cabeça. Só depois de sentir o ligeiro puxão e ouvir um sorriso demasiado feminino, o sorriso de Xana, teve coragem para a enfrentar novamente.

- Sabes qual é a farmácia que está de serviço?
- Não deve ser difícil encontrá-la. Das três há-de ser uma.
- Tem cuidado. Tu nem conheces o fulano.
- Nem preciso. O destino cruzou-nos, ele precisa de ajuda e eu vou ajudá-lo. Depois de amanhã desaparece daqui dizendo que o trataram bem e eu fico muito satisfeita.
- Estás a ser irónica.
- E tu estás a ser ciumento!

O tom de voz da Xana foi demasiado para o Jorge. A xana já não ouviu o pedido de desculpas que Jorge lançou no vazio do gabinete. Longas seriam as horas até sair de serviço. Vai-te lixar Xana!
Xana já levou o Zé para o exterior, para o pequeno parque de estacionamento mesmo junto às urgências. O Zé sente-se tonto e vai amparado na mulher, lembra-se da mãe, também ela tem os seios grandes, talvez por isso se sinta tranquilo. Xana ajudou-o a subir para o Jeep.

- Estás bem?
- Estou. É longe a tua casa?
- Não! Daqui a um quarto de hora estamos lá.
- Posso fechar os olhos?
- Preferia que fosses com eles abertos, pelo menos até chegarmos.
- Percebo, não queres chegar com um morto a casa?

O tom de graça fê-los rir.

- Olha , olha, também sabes rir.

O Zé já tinha fechado os olhos. Tinha a respiração pesada. Os tranquilizantes ainda estavam a fazer efeito. Xana olhou para ele e decidiu ir directo para casa, mais propriamente um monte, uma série de casas baixas distando alguns quilómetros da estrada principal.
Foi o ladrar dos cães que acordou o Zé.

- Onde estou?

(cont.)

Quinze anos depois - Outubro

Decidi arrumar a garagem, que no meu caso não serve para arrumar nenhum carro. Entre bicicletas, bolas de basquet, máquina de lavar roupa, arca frigorífica, uma mesa de actividades e muito mais coisas, encontra-se um móvel onde vou colocando o que não me cabe na sala. Dentro dele encontrei rastos na minha vida, passo a explicar. Sempre gostei de coleccionar revistas. Quando mais novo comprei a revista semanal “Tintin” onde o Vasco Granja me ensinou a gostar de Corto Maltese, do Tenente Blueberry, de Bruno Brazil e a sua brigada Caimão entre muitos outros. Já mais velhinho, em 82, acabado de fazer a prova oral em francês do 11ºano, comecei a comprar a revista Rock & Folck, francesa, hábito que só larguei nos anos noventa. Em noventa e dois rendi-me à irreverência do estilo do Miguel Sousa Tavares que imprimiu, aliada a um excelente cuidado gráfico, à Grande Reportagem uma imagem de marca que quase aguentou a sua saída. Tenho a década de noventa em Grandes Reportagens guardadas na garagem. Porque estamos em Outubro aqui vão algumas das actualidades de 92, já lá vão quinze anos.

No Editorial, Miguel Sousa Tavares afirmava num texto intitulado “Regresso à barbárie”.

“que Europa é esta, que Nova Ordem Internacional é esta, que assiste inerte à selvajaria que todas as noites nos é servida em casa pelas imagens da televisão? Enquanto a Europa discute se há-de ou não viver com o tratado de Maastricht, para depois ter uma política externa e uma política de defesa comum que lhe permitirão (dentro de três ou quatro anos) intervir em situações como a da Bósnia,”

Na secção “As coisas que eles dizem” aparece uma citação de D. José Policarpo, à altura bispo auxiliar de Lisboa e Reitor da Universidade Católica, retirada do semanário Expresso (edição de 12 de Setembro de 92). Assim, sem “papas na língua”, como diz o povo, desculpem-me falar dele, ele que anda tão mal tratado.

“O caso de Timor Leste é muito complicado. Em Portugal, a posição dos media em relação a Timor Leste só apanha um dos lados do problema. Nós temos informações muito mais completas, que nos levam a uma tomada de posição mais silenciosa, até para ser eficaz. Todos nós sabemos que estes problemas complicados não se resolvem na praça pública mas na confidencialidade das chancelarias e canais diplomáticos.”

Deu-lhe a Grande Reportagem o Prémio “Deus lhe perdoe tanto silêncio” visto tratar-se de uma secção onde se premiavam citações.

Nas actualidades um pequeno artigo falava de cientistas russos a viver e trabalhar no Pólo Sul. Dizia esse artigo que os tais cientistas continuavam de “castigo”. Punha-se em questão a sua sobrevivência no Inverno que ai vinha. Sentindo-se abandonados pediram socorro pela rádio a outros cientistas de uma base Americana em Amundsen-Scott (Trágica a morte de Scott). Declarações feitas pelo chefe da base russa de Vostok referiam “O governo deixou-nos cair.”. Em resposta as autoridades de Moscovo justificavam-se com outras prioridades. Em todas as estações antárcticas ponderava-se o recurso à greve inviabilizando o envio dos boletins meteorológicos para S. Petersburgo e para Moscovo. Sentenciava o artigo, “A situação de abandono destes técnicos russos é uma das consequências das mudanças ocorridas na ex-União soviética. Recebem apenas 10 por cento dos salários a que têm direito e os responsáveis pelas estações polares, ou seja o Comité de Estado para a Hidrometeorologia, caiu em desgraça.”.


Na “fotossíntese” encontrávamos uma fotografia do Eng.º Guterres (Foto de Pedro Silva, publicada no Diário de Notícias de 16-9-92). O Homem estava mais novo, queimado pelo sol das férias acabadas de gozar, dizia-se, na Praia dos Tomates.
Em pleno Cavaquismo criticava-se a apatia do PS em férias no Algarve e do PC na festa da Atalaia. Em tom de desabafo constatava-se, “A oposição em Portugal já só se ouve graças ao CDS”.

Ainda e só CDS com Paulo Portas no semanário Independente (acho que o MEC também para lá andava), isto digo eu.

No próximo mês vou trazer outras recordações.

Um grande bem haja para todos os que colaboraram na Grande reportagem. A eles lhes peço que vejam este post como um tributo e não como um plágio.

2007-10-12

O Automóvel VI

Continuava com os pulsos presos.

Onde estou?
Estás no hospital e tens sorte em não ter partido nada. Foste de cabeça ao chão duas vezes e continuas vivo. És um tipo com sorte.
Devo dizer obrigado?
Se quiseres?
Estou a ser parvo.
Ainda é cedo para dizer o que tu estás a ser.
Tens razão.
Eu sei.
Podes ajudar-me?
Eu estou a ajudar-te!

A Xana chegou-se ao Zé e tirava-lhe os cintos. O Zé olhava-a com o ar culpado de quem cometeu um acto injusto. O semblante culpado do homem contrastava com a compreensão da mulher.

Estás melhor?
Estou! Que horas são?
É quase meia-noite.
Meia-noite?!
Da primeira vez que acordaste foste muito agressivo, foram precisos sedativos.
Da primeira vez?
Depois de saltares do meu jeep desmaiaste. Consegui reanimar-te e chamei os bombeiros. Quando eles chegaram só chamavas pela carrinha e não deixavas que te levassem para o hospital. Os gajos passaram-se e deram-te uma injecção. Fiquei contigo até agora.
Obrigado!
As palavras saíram-lhe sinceras, descargo de consciência, mas logo se lembrou da Toyota.

E a minha carrinha?
Gostas mesmo muito dela?
Sim!
Parece que não puxaste o travão de mão como deve ser. Encontraram-na voltada ao contrário no fundo de um pequeno barranco.

A cara do Zé transformou-se, sentiu-se desfalecer novamente. Sentiu nojo, tonturas. A minha carrinha, a minha única amiga, sangue do meu sangue.

Como é que ela está?
Está um pouco amassada.
Um pouco?!
Não penses nisso agora. Tens onde ficar?

Como não pensar? Agora sim é que tinha arranjado um belo problema. Não teria decerto dinheiro para o arranjo, ainda por cima com a dificuldade em arranjar peças, muito trabalho de bate chapas, horas de labor naquele lugar escuro a que chamam oficina e que é o único que ele conhece, o único em que ele tem confiança para deixar a sua carrinha, mas primeiro ainda tem de a tirar daqui.

Onde é que ela está?
Não desistes?
Ficou lá?

Xana mostrou propositadamente um ar desiludido e enfadado.

Não. Os moços do reboque são meus amigos e conseguiram tirar de lá a tua querida carrinha que descansa agora no parque de uma oficina para tu amanhã, de cabeça fresca e com calma, decidires o que queres fazer.

O Zé reparava agora na maneira pouco formal como aquela rapariga falava com ele. Parecera-lhe mais velha da primeira vez que a viu, talvez a maneira pouco cuidada como se veste, a ausência de maquilhagem, as maneiras masculinas e de movimentos bruscos, a tenham envelhecido. Agora, com mais atenção apercebe-se da sua juventude, pele morena e lisa, marca de duas ou três borbulhas que ficaram da adolescência na cara bonita embora um pouco arredondada. Xana era uma rapariga alta e forte onde não havia lugar a gorduras supérfluas, os seus vinte e dois anos assim como o trabalho que fazia de permeio com várias actividades radicais não o permitia. Zé reparou que ela esperava uma reacção sua. Era também notório que estava aborrecida.

Conheces algum sítio onde eu possa dormir?

Xana abriu a boca num grande sorriso e largou um risinho demasiado feminino para o seu aspecto.

Agora é que estás a falar bem. Se quiseres podes ficar em minha casa.
E tu não tens medo? Mal me conheces.
No estado em que tu estás não fazes mal a uma mosca, além disso eu vivo com dois irmãos bem maiores que tu. Eu própria sou maior que tu. Tens cara de escritor, ou poeta, muito pálido, magrinho, com ar esgazeado e sonhador.

Não teve coragem para lhe dizer que era segurança. A descrição que ela fizera dele não lhe deixara qualquer vontade de se revelar, por outro lado até lhe agradava saber que não parecia um gorila, que não assustava ninguém. Que melhor oferta poderia ter a estas horas da noite. Admirava-se com a persistência da rapariga. Não é todos os dias que se encontra alguém que nos ajuda de uma maneira desinteressada. Ele que se julga um Michael K português. Solidão, desapego material, fraca figura, que pode alguém esperar dele. Está demasiado cansado para pensar, sente fome.

Preciso comer alguma coisa.
Comes quando chegarmos a casa. Espera um pouco enquanto trato da papelada. É verdade, tirei-te a carteira e as chaves da carrinha.

O Zé levantou-se e deixou-se estar encostado à cama. À sua volta encontravam-se mais duas camas com rodas, ambas ocupadas por idosos. Numa cadeira com rodas estava uma mulher de meia-idade ligada pelo braço a uma embalagem de soro. A enfermaria parecia calma aquela hora, Agora que estava em pé apercebia-se das escoriações, todas superficiais, não tinha partido nada, quase que lhe apeteceu ficar ali durante a noite.

(cont.)

P.S. Bom fim-de-semana!

2007-10-09

O Automóvel V

Cheirava a medicamentos, a desinfectantes vários. Mexeu primeiro os dedos das mãos e dos pés. Apercebendo-se deitado abriu os olhos. O tecto branco cegou-o e fechou-os novamente. Imaginou-se numa enfermaria e teve receio de mover o corpo. O medo de que alguma coisa estivesse mal, a ânsia de saber o quê. Lentamente o medo recua, a ânsia avança destrutiva e num gesto reflexo tenta levantar-se. Sente uma dor aguda que lhe começa nas costas e acaba na perna esquerda. O braço esquerdo também lhe dói e cedeu ao esforço fazendo-o desequilibrar-se. Vencido deixa-se cair. O impacto desamparado da cabeça no chão deixa-o novamente sem sentidos.
Agora o cheiro a medicamentos recorda-o da queda, tem os pulsos presos.
Alguém que se aproxima, ele pressente o movimento, os pés que calçam sapatos sem salto, sola de borracha no guincho com o pavimento polido. O movimento é leve, dir-se-ia gracioso. Neste momento algo respira por cima dele, uma voz desabafa, Ia jurar que o vi mexer. Manteve-se imóvel, deixou que a respiração se afastasse. Não se afastou muito, o barulho de uma cadeira ali perto assim o indicou, novamente a voz, Se ele não acordar vou-me embora. A voz, a voz que o conduzia num Jeep, a voz que lhe gritou, Não faça isso!
Está acordado mas mantém os olhos fechados. Irá decidir abri-los, revelar através deles que recuperou a consciência.
Abriu a porta e saiu, o pânico assim determinou, a carrinha que não estava onde devia estar, a sua imagem num relance, mais abaixo, virada ao contrário num declive abrupto. Abriu a porta e saiu, a voz, Não faça isso!
Ele lá fora, a queda, o vazio, o momento do impacto, a dor e de seguida novamente o vazio, desta vez escuro, intemporal.
É este o momento, decidido está a enfrentar a realidade, o que aconteceu à sua carrinha, onde está a sua carrinha?
Novo movimento reflexo, desta vez com a força que a convicção grava nas nossas decisões, sentado de uma só vez, apoiado nos braços como se estes fossem suporte de um baloiço.
Xana arregalou os olhos, o movimento demasiado rápido surpreendeu-a, já não era a primeira vez.
Olha quem acordou! Já estava para me ir embora.
O Zé ouviu a voz ao longe e quis responder, enrolou a língua nos dentes e grunhiu algo parecido com, Onde está o meu automóvel?
O seu automóvel? Não me faça rir.
Até ele sentiu vontade de rir, por momentos sentiu vontade de rir e sentiu-se ridículo, Onde está a minha carrinha?
Não seria melhor saber onde estás?
Xana está irritada, o Zé está desorientado, melhor o silêncio que vai ficar entre os dois nos minutos que se seguiram.


(Cont.)


P.S. Obrigado a todos os que me comentam por me fazerem continuar. A todos vós um abraço.
Até que tudo o que é a vida nos separe.

2007-10-07

Branco

Branco,
Sou branco, tenho quarenta e dois anos e sou branco,
Podia ser azul, cor-de-rosa, amarelo, mas não…
Sou branco…Por definição…por justificação…
E vejo branco, no branco dos meus olhos,
Vejo branco na minha maneira de ser.
Disseram-me o que era o branco,
Do lado de cá,
Do ocidente.
Eu vejo branco,
Eu pinto de branco,
Eu sonho em branco,
Fizeram-me branco e criaram-me branco.
Se alguma vez fugir,
Fujo em branco.
Não fui eu quem inventou a cor,
Sou consequência.

Pálidas as faces
Das pessoas que por mim passam.
Em certas alturas, na rua, no passeio,
Tudo se desfoca,
Olho para eles e vejo-me.
Pálidos os reflexos
Das manhãs cinzas que inventei.
Janeiro borralho e a humidade nos vidros.
A borra castanha escura,
Escuro do negro,
No negro do café.
A língua que se revolve na boca procura
O doce meigo do açúcar,
O frio que cede ao calor,

Levo o jornal debaixo,
Não sei se do braço, se de todo o arco.
Da coluna arqueada saem coisas,
Demandas, cansaços, os gastos quotidianos,
Pormenores, e tantos que eles são!

Hoje, por ser hoje,
Pensei no que fui, no que sou.
Sobra-me a mim o lado lógico do contador de anos.
Moderno equilíbrio que gasta todas as peças,
Reciclado está o futuro para quem o há-de comer,
O plágio irónico à saída do autocarro.
Falta-me um pouco de vida para o fim de carreira,
Do emprego que vai para além do fim do mês, no fim de mais um dia.
Sou branco,
Digo-o como se tivesse importância,
Justificando, quem sabe,
A falta de outra cor.

2007-09-24

O Automóvel IV

Olhou em redor, cento e oitenta graus de cabeça, o suficiente para se sentir sozinho. Rodou a chave mais uma vez. Um clique e novamente o silêncio, a presença sonora do que se ouve à volta, um registo suave que acompanha a paisagem. Está indeciso, valerá a pena olhar para o motor, tentar percebe-lo, no fim de contas há trinta anos que se conhecem. Se fosse a bateria seria fácil. Procurou o telemóvel na esperança de este ter a bateria carregada, algo que raramente acontecia quando era urgente a utilização. Não vai ser diferente desta vez e a alternativa vai passar pelas pernas do Zé. Tirou a mochila com meia dúzia de livros, os documentos e fechou a carrinha. Afinal não me livrei duma torreira. Não se sentia em má forma, tivesse o tempo mais fresco e o inconveniente da avaria até que seria um bom pretexto para uma caminhada no campo. O restaurante não ficava longe, dois mil metros numa alameda entre pinheiros e a “vacaria” que se adivinha, não mais de quinze minutos, porquê a medição do tempo, retratar o espaço? Ambos relativos pareceram-lhe maiores, a ele que abusou da sua relatividade. Explicando melhor, o Zé não é homem de finanças abastadas, no Zé nada é abastado. Mentira! Existe uma coisa onde o Zé não encontra limites, o seu olhar é orgânico. Voltando ao assunto, o Zé é um teso. Moço bem entrado nos trinta, digamo-lo por simpatia, o ordenado é curto na empresa onde nunca subiu, empresa de segurança que lhe garante os horários mais estranhos nos locais mais impróprios. São portarias de fábricas de noites desertas, estabelecimentos comerciais em hora de ponta, Hospitais e Clínicas de gente doente, enfim, tudo o que lhe mandem fazer, o Zé não é moço de refilar. Assim sendo, a avaria do seu automóvel pode tornar-se um sério problema económico que o poderá privar da sua liberdade. Fez todo o percurso a pensar no assunto, não foi a primeira vez. Também o pai e a mãe tiveram um fim, um dia seria a vez da sua carrinha. O último membro da família, que ele considerava chegada, poderia morrer. Afastou os pensamentos negros, tinha dinheiro suficiente para ir à oficina do André, a dificuldade existia em arranjar peças. Com uma regularidade pendular o Zé levava a Toyota à oficina do André, uma espécie de amante que mantinha uma relação vergonhosa com a sua carrinha e que lhe levava muitas das suas poupanças. Foi assim o trajecto do Zé até ao restaurante, amargurado, receoso, repleto de preocupações, logo ele que detesta preocupações. A fome dissipou-se, o estômago encolheu, só a cabeça crescia, do tamanho dos seus medos. Avistou a placa de faca e garfo apontada. O Zé já só pensava em arranjar um telefone de onde pudesse mandar um pedido de socorro, todo um fim de semana estragado. Ainda por cima a próxima semana seria no Hospital, maldito Hospital, se pudesse recusar, mas não pode.
Alegrou-se ao ver a longa casa rasteira caiada de branco, debruada a azul, pequeno toldo na porta de entrada, letreiro discreto avisando do nome e do que ali se fazia. Sentia-se fatigado, mais da cabeça do que do corpo, por esse motivo deixou-se ficar um pouco cá fora antes de entrar. Organizou as ideias, primeiro iria comer, de nada serviria esperar de barriga vazia, contrariar o pessimismo, relaxar, depois o telefone, um qualquer mecânico que o tentaria intrujar, com sorte ficaria com o problema mecânico resolvido e com menos uns Euros na conta mensal, pelo menos assim o esperava. Foi com o espírito renovado que entrou no restaurante e escolheu uma mesa para se sentar. Ainda hoje está para saber se foi ele que escolheu a mesa ou se esta lhe atravessou o destino insinuando-se tentadora, junto à janela, cheia de luz, para duas pessoas, um pouco afastada das longas mesas de seis e quatro pessoas, beneficiando do facto de uma coluna interior a isolar do resto espaço. Sentou-se e apreciou o aconchego daquela luz, local ideal para observar todo o campo em volta. Ao longe as vacas procuravam abrigo junto das arvores isoladas, mancha castanha e verde marcando a paisagem. Sentiu as palavras da empregada. Sentiu-as sem as ouvir, como se sente a presença de algo que está onde deveria estar, sabe que a intenção das palavras vem acompanhada de uma lista, bastará sorrir e agradecer, obrigado, se calhar nem tanto. Esta era a única mesa de onde se podia ver distintamente o balcão. Estava situada no ponto exacto onde este, fazendo um ângulo de 45º, escondia da sala quem nele se quisesse apoiar. Foi por este motivo que enquanto bebia o café deixou o seu olhar orgânico repousar numa mulher ao balcão. Já tinha telefonado a um mecânico, “amigo” do dono do restaurante que lhe garantiu ajuda dali a uma hora. Ficava portanto com uma boa meia hora sem nada para fazer. De tanto a olhar ela correspondeu e ele receoso baixou a cabeça sem reparar que ela sorriu.
Decidiu pagar ao balcão e o dono do restaurante, dirigindo-se à mulher, arranjou-lhe boleia até à carrinha. Embora envergonhado não teve coragem para recusar. Quase sem palavras e apenas sabendo que lhe chamavam Xana deixou-se arrastar até um velho Landrover. O caminho até à sua Toyota seria rápido. Decidiu aproveitar e olhar para a mulher, que descobria agora, muito bonita. Começava a sentir-se mais à vontade quando ela lhe perguntou pela carrinha, efectivamente já deviam ter chegado ao local onde a tinha deixado. Ao olhar para trás apercebeu-se da árvore que escolhera para a estacionar. Debaixo dela nada se via. Ainda em andamento abriu a porta do jeep e saltou.

(cont.)

2007-09-06

O Automóvel III

Sábado, Verão, uma linda manhã de sol. O “lindo” para as cores claras, brilhantes, o branquear dos tons, a sensação extrema de luz, quase o desconforto, bem ditos óculos escuros.
A Toyota encontra-se imóvel, meio asfalto, meio terra, areia. O ar está salgado, sabe a mar. Estranha névoa que percorre a linha da praia sem nunca passar as dunas, sem nunca ofuscar o sol, traço de vertigem na paisagem costeira. O Zé está de olhos fechados no lugar do condutor. Tem no seu colo um livro aberto. As mãos sobre o livro tremem ligeiramente. A respiração é pausada, por enquanto.
Agora que já é mais tarde, pela cara do Zé escorrem gotas de suor, acelera o ritmo cardíaco, o ar entra e sai mais rápido, mexe as pernas, cai o livro. Acorda assustado, incomodado com a falta de espaço, com o calor, Que brasa!
Ao sair da carrinha reparou no livro aberto, Herberto Hélder, do mundo, “Esta coluna de água, bastam-lhe o peso próprio, o ar à roda,”, a garrafa, com esse precioso líquido, em cima da mesa do restaurante no dia anterior. A decisão de abalar para sul, por dois dias, para ler sob um céu aberto, horizonte sem arestas. Hoje fecha com cuidado o livro de poemas e arruma-o, guarda-o na mochila, esconde-o, hoje é ele o poeta. Antes fosse. As palavras nunca lhe fluíram. Oralmente desaparecem por entre grunhidos e trejeitos faciais. Na escrita emperram no branco da folha. Tantas as vezes que ideias brilhantes se dissiparam na aridez da caneta e do papel. Desistiu de o fazer. Deixou que o olhar fosse a sua poesia.
Percorre a passadeira de madeira que o leva para o primeiro desnível, onde a vegetação é verde seco e as flores arranham. A areia é grossa, talvez nova, ainda pouco rolada nos ciclos marítimos. Sente-a nos pés à mistura com conchas, umas inteiras, outras partidas, todas juntas no limite da maré anterior, perto está a rebentação, escondida no segundo desnível. As ondas desfazem-se na areia numa raiva trepadora que morre na forte inclinação da praia. Difícil entrar e sair, lá dentro tudo é mais calmo, mais amplo, mais bruto, dois metros e deixa-se de ter pé, que magnifico lugar para relaxar, deixar os olhos fazerem magia, soltar a poesia dos azuis do mar, dos azuis do céu. Olhá-los demoradamente, as palavras que não ditas, não escritas, as palavras olhadas, os azuis que o fazem sentir bem, que não é um estranho no mundo, que é normal querer isolar-se, não querer companhia, que transformam tudo isso num belo e efémero poema, como se a palavra efémero lhe pudesse aumentar a beleza. Não fosse o estômago e o Zé teria torrado ao sol. Quase nunca a fome o convence, não é escravo da comida nem das horas para comer, para se sentar à mesa, quase sempre sozinho. Dias não são dias, está com fome, porque não aproveitar? Sentiu-se satisfeito com a sua decisão. Enquanto palmilha o caminho em sentido contrário vai inventando menus, cardápios com nomes a cheirar a Verão, nomes de peixes, peixes abertos no prato, o azeite, o vinagre, só uma gota, para tirar o doce. Apetece-lhe vinho, vinho branco muito fresco, está de apetites, ele que raramente bebe bebidas alcoólicas, muito menos quando conduz. Se vai aproveitar a fome, também vai aproveitar a sede. A carrinha está perto, apercebeu-se que acelerou o passo e sorriu, Que gesto mais impróprio, nem pareço eu! Lançou um último olhar às dunas antes de engrenar a primeira. Fez a inversão de marcha com cuidado e iniciou a subida em segunda. Já no alto, e quando a estrada inicia um serpentear pelo pinhal, o motor falhou. Aproveitando a descida procurou uma sombra, uma daquelas enormes árvores seria sua amiga. De falha passou a silêncio. O arranque eléctrico não fazia mover a mecânica. Merda!


(cont.)

2007-08-23

O Automóvel II

Em Lisboa, tinha ele oito anos, entrou no stand de automóveis. Ia com os pais. Havia dois anos que poupavam dinheiro, dois anos de privações. Decidiram-se prestações, mensalidades de suavidade calculada, a casa na Damaia ainda estava a ser paga. Também venderam o “carocha”.
No stand tudo era novo e limpo. Cheirava a materiais acabados de transformar, aromas acabados de moldar, “Cheira bem.”, disse para si e revelou-o na expressão exibindo um sorriso largo. De olhos bem abertos assimilou o fascínio, o brilho do objecto, o apelo dos panfletos publicitários que haviam convencido os seus pais, que também o tinham convencido. Estacionada no meio, entre dois parentes, quatro portas, duas portas, a station que superava todas as expectativas, mais brilhante, mais cromada, mais negra nos seus estofos, apelativa nos extras, o volante com o símbolo, o conta quilómetros indicando cento e sessenta, quatro velocidades, excelente a subir.
Logo que entraram um homem de meia-idade veio ter com eles, também ele de sorriso aberto. Não se lembra muito bem do homem. Sentou-se na carrinha, no banco de trás, os pais, à frente, simulavam a viagem, o homem incentivava-os, “Veja o cinzeiro, as mudanças, o espaço, o conforto, e ainda não viu o motor!”. Foi a sua primeira viagem na carrinha. Nos olhos cerrados a imagem de uma estrada num espaço aberto, o poster na parede do stand, o carro vermelho, ele ia a conduzir.
O negócio foi demorado, discutiram-se números, dinheiro que faltava, preencheram-se papeis, intermináveis papeis, “Pai, quando é que vamos embora?”, “Vamos já.”, o olhar da mãe, comprovação serena do poder paternal. Nesse dia a carrinha ficou no stand, nesse dia e nos nove dias que o seguiram. Nove noites, nove sonhos, em Janeiro, dias cinzentos, dias que o Zé pintou de amarelo Verão e azul calor. António José viajou por todas as fotografias, todas as imagens, jornais, revistas, televisão.
A televisão a preto e branco, a carrinha cor de vinho atravessando paisagens no telejornal, a carrinha nas imagens do sul de França, na revista da sala de espera do médico da mãe, do médico que disse que a mãe iria morrer alguns anos mais tarde.
Foram buscar a carrinha numa quinta-feira. O tecto que desaparece e dá lugar ao céu, a cara esborrachada no vidro, a respiração presa no movimento da máquina. Percorreram as ruas de Lisboa num estranho momento de sol. A Damaia chegou e havia lugar para arrumar, muitos lugares. Da janela do primeiro andar, depois do jantar, ficaram olhando a carrinha, indiferentes à intensa chuva que caía. Nesse dia não sonhou.
Sexta à noite partiram para a terra, foi a primeira grande viagem da Toyota.

(cont.)

2007-08-14

O Automóvel

Automóvel, viatura, carro, bólide ou então a marca, “Eu tenho um Mercedes.”, “Eu tenho um BMW.”, “Eu tenho um Fiat Uno em segunda mão”. A personagem de quem vou contar este episódio trata o carro por “O meu carro”, para os amigos o seu carro é “O chaço do Zé.”. O Zé tem um carinho especial pela Toyota Corolla 1200 station, cor de vinho tinto, herdou-a do pai. Junto com a carrinha veio também o apartamento na Damaia e uma série de bugigangas que lhe causaram grande sentimento de culpa, como escolher o que deitar fora de entre os pertences de um pai morto. Sem dinheiro para remodelar a casa aligeirou-a de tudo o que precisasse de muita limpeza. Ainda hoje recorda com imensa tristeza esses dias em que as coisas iam e vinham para dentro de grandes caixas de papelão, cortesia de um vizinho dono de uma pequena loja de electrodomésticos na Amadora, objectos que se demoravam nas mãos, primeiro uma ligeira lembrança, estava com a mãe, com o pai, depois o local, Portimão, a hora do dia, talvez meio-dia, antes do almoço de certeza, comeu à pressa para lhe poder mexer, aquela jarra branca cheia de ramos verdes e flores, parecem rosas, são rosas. Já não tem essa jarra, partiu-a a dona Chica, Cabo-Verdiana forte e de temperamento instável que lhe limpa a casa uma vez por semana. Para o Zé a casa não é importante, também não se pode dar a grandes luxos. Tem o essencial para os padrões normais de vida num apartamento, máquinas para lavar, a roupa, a loiça, máquina de frio, aspirador, ferro de engomar e uma televisão. Também tem um leitor de cassetes VHS que ainda funciona, muito embora o aspecto do aparelho indiciasse outra constatação. Além destas essencialidades também tem uma cama, uma mesa-de-cabeceira, uma pequena escrivaninha, uma cadeira, isto no quarto. Na sala o móvel da televisão, contraplacado à vista por detrás da fina capa a imitar pinho, um sofá que com boa vontade albergaria quatro pessoas não anafadas. Na cozinha uma mesa, seis cadeiras, número exagerado para o uso diário. Só uma se mostra usada, prova que o Zé é homem de hábitos e rotinas e escolhe sempre a forma de utilizar os mesmos objectos, passava-se o mesmo com os garfos, as facas, os pratos, os copos. Da sala pode ir-se para outros dois quartos, o quarto do pai que ficou na mesma desde que este morreu e outro, mais pequeno, atravancado de estantes cheias de livros, o vício do Zé, a leitura.
O Zé é António, podia ser Tó-Zé mas não é. É António José Maria Cardoso, António porque o avó paterno era António, José Maria porque sua mãe era devota a Cristo, o Cardoso também é do avó paterno, que assim sendo tem a primazia do baptismo. Quis o destino que António Manuel Cardoso nunca tenha conhecido o neto. Foi Miguel Cardoso, pai do Zé, que assim prestou homenagem à memória do progenitor. Mas que interessa o nome, interessa o suficiente para dele contar-mos toda uma história se for essa a intenção. Não é este o caso.
O Zé tem uma paixão, a sua carrinha Toyota Corolla. Aos fins-de-semana, faça sol ou faça chuva, planta-se com a sua carrinha num local perto do mar e desfruta do prazer da leitura durante horas. Baixou os bancos de trás de modo a só poder transportar mais um passageiro. No banco do passageiro encontra-se um amontoado de livros. O motor da carrinha está afinado, a carroçaria não apresenta mazelas, a pintura está em bom estado, os interiores estão cuidados, gastos mas cuidados. Desde os seus oito anos que aquela carrinha é o seu meio de transporte, o seu automóvel.

(Cont.)



P.S. A história que agora começei pode ou não ser original, tantas são as palavras que já foram escritas, uma coisa eu prometo, não a copiei de ninguém embora me tenha inspirado num pequeno conto de nome “O Capote” escrito por Nikolai Gogol no século XIX que situou a acção na cidade de São Petersburgo

2007-08-04

Ressacando das férias (a culpa de quem não quer produzir)




De espada na mão decapitei uns quantos. Estava deitado numa toalha, numa praia…E o mar, sempre o mar e o som do mesmo agora nos meus ouvidos e eu deitado numa toalha.
O Sol, também o Sol. O Sol nos meus olhos cerrados e as figuras por ele criadas…e eu divirto-me e deixo-me levar.
Que bom o descanso…O descanso?! Sim o descanso, o mar manso, a toalha, a areia, o silêncio no grito da minha filha, “Pai já posso tomar banho?”, “Espera mais um bocadinho…”, “Vá lá Pai!...”.
Eu e a minha mulher tocando-nos por amor ao toque, o leve eriçar da penugem corporal, a sensação de que o tempo pode mesmo ser parado.
O carro sobe junto à falésia e de repente fura a rocha, uma vez e outra e outra ainda, desemboca num vale, numa rotunda, na escolha que sempre se faz quando se viaja sem destino, “Paulo, temos gasolina?”, “É melhor parar aqui.”.
De espada na mão decapitei uns quantos…Que nobre o sentido das coisas, são cortes temporários, cabeças que hão-de voltar ao lugar.
No dia seguinte o sol e eu, e a toalha, o agrado da irresponsabilidade, tenho tempo para vocês, consigo ouvir-vos melhor…Estamos numa ilha, isolados do mundo…
O que eu gosto mais das férias é a minha filha, a minha mulher…O cenário pode mudar, escolha-se o cenário!
A minha filha, a minha mulher, os meus amigos, o meu mundo!

Que pena as férias terem acabado…

2007-07-07

O que me ficou depois de ter escrito IV

A garrafa já está vazia
Raul não sente o alcool.

“Onde estás Joana?!”
“Joana…Joana…Joana…Joana!...?
Adormeci nos teus braços, entreguei-me no teu corpo, aconchego de mãe…”,
“Joana…Joana…Joana…Joana!...
Que vou eu fazer das folhas escritas?”.

A garrafa está vazia e ele tão cheio.
Poucas as palavras para tão cheio conteúdo.

“Tenho cem palavras escritas em Português escorreito, em verso, do verso filosofo, do professor frustrado.”,
“Preciso de ti Joana, dos teus braços, do teu corpo, aconchego de mãe…Não Joana! Estou a mentir-te…Não sei do teu corpo…Agora que não estás aqui!”,
“Joana…Joana…Joana…Joana…
…Lembra-me um sonho lindo…Fausto? Sim! O músico, o Português!”.
“Vou tomar banho, lavar-me de suores residuais, sínteses químicas, produtos das reacções, das minhas reacções…Joana…Joana…Joana…Espera por mim…Joana!...”

Guarda o saquinho de pó branco junto do arroz, na cozinha, cinco gramas mal pesadas.

“Vou desistir, pedir a demissão, a rescisão gentil do contrato…Amigável…Retirem-me da trincheira, da fronteira, da loucura…”,
“Que vou eu fazer dos meus ensinamentos, do meu entendimento, das horas que passei lendo tudo o que os outros pensaram, tudo tão depressa, demasiado depressa…Hoje, depois dos quarenta…Que irei eu fazer depois dos cinquenta?...Talvez F… , Pedro? Sim! O Português, o cantor!”

Abre mais uma garrafa, a última, a que provoca pânico de ausência, demência. Limpou-se delicadamente, vestiu-se de novo, como se novo fosse, como se não se sentisse velho. Ao fim de todos estes anos, tantas as páginas que faltaram.

“Joana…Joana…Joana…”

A demência, o pânico, a ausência…

“…Joana…”

Agora de novo, como se novo fosse. Novo de gestos lentos.

“Onde estás Raul, Dr. Raul, Sr. Raul, Professor Raul, Raul?...Onde estás Joana? Simplesmente Joana…No passado, na rádio novela, simplesmente Maria, simplesmente um nome…”

O saco com o pó branco voltou-lhe à mão. Entretanto Joana discute com o patrão. O patrão sente um enorme desanimo por ainda não a ter levado para a cama.
Raul pega no telefone…

“Atende Joana!...Janta comigo…Não me deixes só…”

A Joana vai sair mais cedo do escritório. Não sabe se vai voltar. O patrão, o Dr. João está a sangrar do nariz, em silêncio, encharcando um lenço de pano fino. A Joana atendeu o telefone.

“Sim, eu vou jantar contigo. Não faças asneiras…Promete-me…”, “Tu sabes que não posso prome…”, “Eu preciso falar contigo.”, “Eu também preciso de ti…”.

A Joana vai chegar a tempo de chamar uma ambulância. O Dr. Raul não irá voltar ao ensino. Seis meses isolado na serra da estrela fizeram dele um homem novo. Joana vai ficar com ele, ama-o. Foi ela que o levou para casa dos avós e lá ficou nos tempos mais díficeis. Depois arranjou emprego em Coimbra…Do resto não sei…Um conto é mesmo assim, é uma fracção de tempo, um pouco de vida, da vida…

FIM


P.S. Vou de férias. À Titá, ao PB, ao AD, à Isabel, ao Rocha de Sousa, à Elsa, ao Talk, enfim, a todos os que me visitam e comentam um abraço.
Até sempre!
(Sim, são estes os Blogues que eu mais visito)

2007-07-02

O que me ficou depois de ter escrito III

“Querida Joana…”, o desabafo, o arrependimento. Joana foi para casa cedo. Saíu ainda o sol não tinha aparecido. Preocupou-se com o quarto, com o Dr. Raul que desmaiara a altas horas da madrugada pregando-lhe um susto de morte. Chegou a falar com a emergência médica, pediu informações, instruções, procedimentos, agradeceu e desligou…O Raul tinha acordado e procurava o copo, cego, de gestos desconexos. Aconchegou-o no seu colo, adormeceram os dois…Antes de sair arrumou o quarto, silenciosa, vigilante do sopro de vida do seu amante. Está apaixonada, sempre gostou de se apaixonar, de todas as vezes sofreu…Sina de quem vive intensa a dependência amorosa…Mas quem poderá dizer que viveu sem a sentir?
Joana foi de carro para a cidade, ficou presa no transito e chorou enquanto ouvia as notícias das nove. Apeteceu-lhe telefonar mas não foi capaz. Agarrou o telemóvel com força até o sentir queimar…Largou-o bruscamente. Procurou o lenço na mala e deixou o motor do carro ir abaixo. Atrás de sim as buzinas começaram a tocar, uma mistura desagradável de sons estridentes que lhe agravou a tensão. Fechou os olhos e sentiu correrem-lhe lágrimas pela cara, percebeu que chorava novamente…Por momentos tudo despareceu…O motor do carro está a funcionar. Olhou-se no espelho retrovisor. Dois grandes riscos negros nas faces, um em cada uma, emprestavam-lhe um ar sinistro de palhaço assassino. Simétricos os riscos, o olhar que endureçera, “Reage Joana!”, “Que suplício!”, “Com sorte daqui a meia hora largo o carro.”.
Deixou a moeda habitual a um dos arrumadores habituais. Este revezava-se com mais dois que protegiam o local contra possíveis intrusos. Era sem dúvida o mais forte. Dizia-se Romeno, confessava a fome, os vícios, os crimes e mostrava uma garra fora do normal para quem anda naquela vida. Joana nunca se sentira incomodada com ele, antes pelo contrário, preferia a sua presença à dos outros dois “sócios”. Foi gentil o suficiente para reparar no desarranjo de Joana, suficiente para lhe perguntar se ela precisava de alguma coisa, para lhe garantir que não precisava de se preocupar com o carro e que o dia ia estar muito bonito. Sim, a Joana não tinha dúvidas quanto a isso. Precisava limpar a cara, tentar-se apresentável. Entrou no café que ficava mesmo junto à entrada do escritório de advogados onde trabalhava. Cumprimentou a empregada mais velha e fez-lhe sinal que precisava de ir à casa de banho. Esta desimpediu a ponta do balcão e preparou-lhe um chá bem quente com uma torrada.
Joana deixou-se ficar, de mãos no lavatório, olhando-se no espelho, “Gosto tanto de ti Raul, deixa-me pelo menos provar o mel… antes do fel…”, riu-se de si, da rima feita ao acaso. O que a juventude não faz, não há nada que pague a juventude, um sorriso, uma expressão que muda, os vinte cinco anos de Joana a mostrar frescura, sangue que é quente, contracenso, a frescura do semblante, o sangue quente…
Bebeu o chá em silêncio, perdeu-se na conversa de dois homens que discutiam uma contratação do Benfica. Enquanto mastigava a torrada reflectiu sobre a facilidade que os homens tinham em descarregar as suas frustrações no futebol. Nem todos eram assim, mas para o caso isso também não interessava, também as mulheres tinham os seus truques. No seu caso não eram as novelas ou as revistas, mas honestamente não poderia dizer-se imune a esse tipo de descompressão. Gostava de fazer compras, gostava de comprar, isso fazia-a sentir-se bem…Quando não estava a ler, a estudar, a escrever, a amar…Comprar e vestir-se…Joana era uma mulher bem feita, talvez um pouco magra, mas a roupa assentava-lhe bem e ela gostava da sensação.
Libertou-se do balcão com um beijo para a dona Marta que apontou a despesa num bloco.
Agora o trabalho, o escritório. Primeiro a entrada do edíficio, é preciso dar ordem às coisas…O edificio, que tinha beneficiado de melhoramentos recentes, era ostensivamente fruto dos anos sessenta, habitações plurifamiliares que se foram desabitando, pilar, viga. Não gostava dele nem o sentia confortável. Hoje, em particular, ser-lhe-ia ainda mais desagradável…


(Cont.)


P.S. Perdoem-me o espaçamento. Este conto vai ter de acabar até ao fim da semana...Depois...Férias...Descanso...Um abraço a todos os visitantes.

2007-06-23

O Trabalho (Pequena reflexão nocturna)

Diz Javé a Adão

“Maldita seja a terra por tua causa, e dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, todos os dia da tua vida. Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado. Porque tu és pó e ao pó hás-de voltar.” (Génesis, 3, 17-19)

O penoso trabalho, o castigo diário cravado nas nossas mais remotas origens religiosas. Será que nos apercebemos da maldição, da cruz herdada de Adão, o primeiro a arrancar alimento através da canseira, do suor, até à morte…
Mas que dizer do trabalho? O trabalho é o que é, vale o que vale, o dos outros vale sempre menos…
Pesada herança a de Moisés que teve de convencer os Judeus, pastores nómadas, a praticarem a agricultura. Qual o argumento? Na verdade consegui-o convencendo-os da irreversibilidade do castigo divino. Distribuiu as terras e criou leis que impediam a sua venda definitiva. De cinquenta em cinquenta anos o Jubileu saldava todas as dívidas, a ninguém seria espoliado o direito à terra, ao ganha pão, ao trabalho!
Como poderão os ricos comer o pão com o suor no rosto, como poderão os pobres suar menos para comer um pouco mais de pão, como poderão os desempregados comer algum pão, pobres da pobreza , da miséria e da exclusão…E do trabalho.
Enquanto o trabalho for pago será sempre deficitário no número de vagas. Na escravatura não existe limite para a necessidade de fazer, construir, ampliar, angariar. A remuneração é um sério problema, travão do progresso.
Que novos reinos existem? Serão os países pobres os verdadeiros herdeiros da palavra de Javé?
Aqui fica a minha dúvida, a minha vertigem nocturna…



Um bom fim de semana a todos!...

2007-06-14

O que me ficou depois de ter escrito II

Em tudo acertámos, no copo, na casa de banho, no cigarro, no… Sente um amargo na boca, “O gosto amargo é causado por átomos redondos, macios, pequenos, cuja circunferência é, na realidade, sinuosa; portanto, ele é ao mesmo tempo pegajoso e viscoso.”, malditos filosofos, malditos átomos, redondos, macios…O amargo quimico da substância que lhe entrou pela veia, “Por convenção existem o doce e o amargo, o quente e o frio, por convenção existe a cor; na verdade são os átomos e o vazio…”, o vazio…”Demócrito defende que os elementos são o cheio e o vazio; chama-lhes ser e não ser, respectivamente. Ser é cheio e sólido, não-ser é vazio e não-denso.”, tudo se resume a um problema de densidade, e porque não?...
O coração acelera, tem palpitações de esforço. O embolo desce e sobe uma vez, duas vezes, três vezes…E pára! Por momentos as forças vão-se, impossível o gesto, o movimento, perdido no orgasmo que é todo aquele sentir, aquele calor e logo a seguir o arrepio de frio e as forças novamente a voltarem…”Um dia não volto…”. Agora sim, está pronto para enfrentar o carrasco branco. “Onde é que eu ia?...”, estranhou a arrumação, as folhas alinhadas, o repouso da máquina sobre a mesa. Pegou nas folhas como se não fossem suas, como se aquelas palavras não tivessem nascido do contacto dos seus dedos com as teclas, e passou-as uma a uma, uma a uma olhou-as sem as ler, admirando-se da escrita, do contorno preto das estrofes…Nem bem preto…Mais cinzento…”Que bela silhueta…Terá igualmente belas palavras…”…

“Que fazer com o saber que me incomoda
Filosofo do pecado
Irmão gemeo que me ocupas…
Bebe um golo e cerra os olhos com força
Marca a vida antes que ela te fuja
Dá-lhe metade de ti
De mim
Não a deixes ir sózinha…Matéria…”

Não se reconheçe nas palavras, no desabafo feito poema, “Que merda é esta?...”, “Onde está a prosa segura que me caracteriza, onde estão os mestres que deveria evocar?”…”O intelecto actua sempre como se o fascinasse a contemplação da matéria inerte. É a vida a olhar para fora, saindo de si mesma, tomando como principio os caminhos da matéria inorgânica, para dirigi-los de facto.”, “Bergson tem razão…Que fascinio…O intelecto com o poder de ver as coisas separadas e a matéria para as destinguir como diferentes…Será que alguma vez o compreendi? Que me interessa isso agora? Se está certo ou errado…Só me interessa o belo…”, “Porque não me sai bela a poesia? Porquê a amargura…Falso filosofo, falso poeta…”.
Enrola mais um cigarro, acaba de beber o que resta no copo e enche-o novamente, está calor. Decidiu abrir os estores e o sol quase que o cega, “Que bonito dia, que boa essa energia solar, fonte de vida…E de morte…”. No prédio em frente, duas adolescentes numa janela fazem-lhe caretas de nojo. Apercebe-se do seu triste estado, “Aonde queres chegar Raul…Dr. Raul…Professor Raul…Raul?”, afasta-se da janela e apaga o candeiro, refugia-se no fundo de um sofá velho, em pele, de um avó famoso, também ele Doutor, Professor, homem de grande saber, de grande capacidade de trabalho, com extensa obra públicada…”…Ouve bem Raul, sem trabalho nada se consegue. Os sonhos são bonitos mas precisamos conquistá-los.”, “Sim avó.”, ou só o dizer que sim com a cabeça, que idade teria?
O pensamento cortado pela presença de um pedaço de papel, porque não reparou nele? Estava junto da garrafa, agora definitivamente meio vazia. Um pedaço de papel pequeno, bem dobrado, bem cheiroso. Desdobrou-o adivinhando-lhe letras, palavras, frases, sentidos.

“Amo-o Dr. Raul
Amo-te Raul
Não te destruas por favor

Joana”

“Joana…Afinal foste tu…Querida Joana…”


(Continua...Com um abraço para todos os que se dão ao trabalho de por cá passar)

2007-06-05

Para lá dos recantos, dos segredos da alma.


Para lá dos recantos, dos segredos da alma,
Das crenças e superstições.
Distante fica o corpo, observando-nos em fuga…

Retenho o cheiro da seara ceifada,
Os fardos de formas geométricas,
O aroma do caule cortado, multiplicado…

Tenho o segredo de mim,
Sei-me fazer feliz,
Egoísta do que não sei nem quero saber…

Olho para cima e invento deuses,
Faço do que me ensinaram,
Sei que não tenho a chave…

Tenho a porta aberta,
Numa amplitude incerta,
O suficiente para passar…

…A areia que desliza na ampulheta…
O mecanismo gravítico, movimento manual que prolonga o tempo,
Não me posso esquecer de a virar…
Escorre e dá-me a medida do que existi, do que existo, do que tenho para dar.
Sou eu que te peço, agora que te virei.
Vejo o amontoado de tempo, acumulando-se no fundo,
O fio de areia que o aumenta…Escorre e responde-me granulado temporal…

Obrigado!
Pelo teu silêncio de frequências, rumor de partículas roçando-se.
Obrigado por me fazeres olhar…
Para lá dos recantos, dos segredos da alma.

2007-06-02

O que me ficou depois de ter escrito

A janela de cortinas arregaçadas parecia nua e oferecia do alto do segundo andar um espectáculo de desordem e sujidade a quem, convenientemente colocado, o pudesse contemplar. Numa cama de casal uns lençois, que já deviam ter sido brancos, eternamente enrodilhados salientavam o ar de abandono. Além da cama pouco mais havia a registar, uma cómoda pequena a seus pés, uma escrivaninha e uma cadeira encostadas à parede que defronte para a janela ostentava uma gravura a carvão de um mosteiro, numa moldura envelhecida. Algumas garrafas de vinho pelo chão e dois cinzeiros completamente cheios, um na cama outro na escrivaninha, eram adereços de uma companhia de Teatro sem subsídios. Na janela ao lado o contraste era evidente, com os estores totalmente fechados como que negando todo e qualquer raio de luz que ousasse iluminar por pouco que fosse a escuridão que se adivinhava nesse quarto, levando-nos a concluir, talvez um pouco apressadamente, que se no outro quarto não se via ninguém, neste deveria ser presença pelo menos um ser humano. Embora apressada, a conclusão estava correcta, efectivamente havia vida nesse quarto, alguém que dormindo, procurava passar despercebido ao mundo exterior, esse que por norma nos costuma rodear e nalguns casos trágicos digerir. Como não se pode ter tudo, correcta a conclusão, errada a escuridão que se tentou adivinhar. Um candeeiro de pé alto iluminava uma sala onde tudo parecia demasiado arrumado tendo em conta o aspecto abandonado do homem que dormia em tronco nu, num sofá que poderia ser cama se o tivessem aberto para esse efeito. Este homem não é de se preocupar com locais para dormir, o sono vem-lhe do cansaço, das horas de desassossego.
O sol está a pique, como deve estar o sol que quer queimar. Algumas gota de suor escorrem-lhe da testa, destilam o veneno que o consumiu, doce veneno…Hummm, doce veneno…Quando acordar logo sentirá a carência. Arrumada, a sala mostrava-se indiscreta aos vícios, uma caixa metálica com algodão, uma seringa de vidro e respectiva agulha, um vidro de relógio, uma garrafa de água, um saquinho de pó branco…Uma garrafa de Grants meio cheia…Meio vazia…Sempre a mesma merda de dilema…Desde que não seja a última…Não consegue dormir sem saber que pelo menos existem duas garrafas por abrir…Ao acordar a mão pede o copo, o copo pede a garrafa e ela tem de estar lá…Como poderia ele escrever, como poderia ele ensinar…Ainda se dão ao trabalho de o ouvir na faculdade onde dá aulas de filosofia…Esqueçeu os filosofos sem esqueçer a filosofia, algumas más linguas acusam-no de inventar…Tudo mentira…
Está de baixa vai para três semanas, para escrever o livro que o vai tirar da miséria, que o vai libertar de patrões…Desculpas, mais de vinte dias a consumir de modo intensivo…Escorre-lhe suor do corpo magro, branco, magro sem fragilidades, branco sujo da vida.
Acordou, os olhos mantêm-se fechados, primeiro só os ouvidos, o emaranhado sonoro, o fio por onde lhe pega, na agulha, na cabeça, a ambulância ao longe, os miúdos na rua, o autocarro que arranca, o trinco da porta da escada…Também ladram, os cães da vizinha…
Já tem todos os sons, agora sim pode abrir os olhos, um de cada vez, devagar…O corpo ainda não se mexeu…Quando o fizer vai pegar no copo e vai reparar que está vazio, vai enche-lo com a garrafa meio cheia, meio vazia, verificar do stock…Só depois a casa de banho, o cigarro sem filtro que vai enrolar à mão, o saquinho de pó branco…Está a ficar vazio…Como a conta bancária…Está quase o fim do mês…
Ainda usa máquina de escrever, como o Paul Auster, só que não houve nenhum artista a querer pintá-la, nem ele que também se julga pintor. Também a máquina está arrumada, alinhada com a mesa, alinhada com uma resma de folhas escritas.

(I Parte, tem continuação)

2007-05-30

Foi hoje! Podia ter sido outro dia...

Manifesto de intenções

Eu prometo não inventar mais do que posso.
Prometo também escrever…escrever sobre tudo…sobretudo o que não conseguir esconder.
Não tenho pretensões moralistas, nem acredito que alguém precise delas.
Sou novo da idade, de que me quero, sou velho da idade que já tive…E acrescento…
Regulo os dias por horários.
Regulo os dias pela pausas…Entre cada pausa um anseio…
Não durmo enquanto falo.
Nas escadas, se as desço, olho para os pés…Não é visível…
Entristece-me o adeus definitivo, o abalar sem perspectivas.
Não evito confrontos, mas preciso de razões.
Por elas vou lutar todos os dias.
Na indignação, no desencanto vou encontrar motivos para viver.
Prometo não me esquecer.
Vou-me lembrar de ti e de todos os que estiveram comigo.


Greve Geral

Escrevo estas linhas sem ter ouvido a comunicação social. Levantei-me cedo e fui andar de bicicleta, estou de folga. Havia tempo que eu não me sentia tão bem. Benditas sejam, a cremalheira, a corrente, todo aquele conjunto de engenhocas que me permite galgar distâncias, encontrar-me só com as minhas decisões…Parece fácil mas não é...Quando se pedala os caminhos que se escolhem pegam-se ao corpo, pagam-se com o corpo…É preciso saber quanto o corpo vale, fazer a gestão do seu valor…Também para a vida…Durasse a vida cento e oitenta minutos, o tempo de uma volta no campo…
Não estou em greve, estou de folga. Chateia-me não ter sido posto à prova, aferir do meu inconformismo. Nada a fazer, se tenho dúvidas com elas vou ter de ficar. De qualquer maneira é a primeira vez que, enquanto trabalhador sindicalizado, não faço greve.
Não sei se foi um êxito ou um fracasso, da minha experiência estas coisas não se medem como no futebol…”Quem ganhou?”, “O Governo, três zero!”, ou, “O Sindicato, dois a um!”, ou ainda, “Empataram a zero!”, são outras as questões. Estamos ou não treinados para ver esta coisa das greves como coisas de comunistas? O que é ser comunista? Quantos de nós leram Marx ou Lenine? Confesso que li pouco.
Percebo no entanto o sonho dos incógnitos, a necessidade de justiça de quem não se evidenciou, obviamente e por definição, a grande maioria.
Entendo a greve como uma medida de protesto, um medir forças com o poder, com todas as consequências que possam devir desse facto. Assusta-me a represália, o despedimento, a exclusão social dos desempregados, a culpa do insucesso, a culpa é nossa! De quem mais haveria de ser?
Hoje, dia trinta de Maio de dois mil e sete, houve com certeza gente corajosa, gente que fez por nós o que gostaríamos de ter feito…Mas não fizemos…Quando nos falta a coragem tão fáceis são as desculpas…Não interessa se são comunistas, istas…Interessa saber se acreditamos no caminho ou se estamos lá apenas por que nos falta a garra, medo de acreditar que haja outras soluções.
Amanhã tudo voltará à normalidade. De alguma forma vamos esquecer isto tudo e trabalhar para os novos impostos…”Sim! A electricidade é mais barata em Espanha.”, “Os professores na Escócia ganham três mil e seiscentos euros.”, “Sim, fomos mal governados e por esse motivo estamos a pagar mais que os outros…Isto não era preciso sermos Espanhóis, bastava-nos um Rei, ou talvez Salazar…Quem sabe…”.
Perdeu-se a culpa, na curta memória do último fim de semana já não se sabe quem lixou isto tudo. Foi Salazar, foi a democracia, os anos comunistas do PREC, os anos socialistas, a AD, o PSD, o PS, novamente o PSD agora com o CDS, novamente o PS…Talvez os Portugueses…Em última análise esses serão os culpados…Sim! A maioria de nós vai pagar por isso.

2007-05-26

Para além do Tejo

Espelho, espelho meu, existe alguém mais burro que eu?
Eu nasci para ser cão, não um burro! Cabrão de espelho…Que teimosia em duplicar-me com orelhas grandes, espetadas, olhos grandes, negros, estúpidos.
Costumo ladrar desencontrado com os outros, para me ouvir, para afinar o meu gemer canino, fazer-me de cão. São cascos senhora, são cascos, as extremidades que me unem ao chão e embora eu esteja convencido de que estou a uivar, será a voz de um burro o que de mim sairá…Eu até já estou habituado à ideia, desiludido mas habituado, acomodado.


Hoje é o deserto, alguém que me alerta, “Vives num deserto, não tens hospitais, não tens escolas, universidades, comércio, pessoas…Não existes e assim vais continuar, nómada da minha indiferença”. Obrigado Sr. Ministro, agradeço-lhe pelo que tenho de mais sagrado, a sua falta de atenção, a sua insensibilidade, a sua falta de educação. O que somos nós a Sul do Tejo, aquele terço de Portugal que se estende até ás praias do Algarve onde tudo muda?
O Sr. Doutor Almeida Santos é peremptório, venham os terroristas, destroem-se as pontes e pimba, toda a segurança nacional fica ameaçada…Ou Ota ou morte!
Espelho, espelho meu existe alguém mais camelo que eu?
Não tenho particular apreço por aeroportos e aprecio o esforço dos responsáveis governativos por me confundirem com a paisagem, sou apenas aquela coisa à beira da auto-estrada ou por detrás da colina…Lá mais dentro no planalto ou do outro lado, para junto do Oceano Atlântico.
O engano, a inconveniência, o deslize, o fugir a boca para a verdade. Desta vez não me posso queixar, são eles próprios que o dizem, país pobre, de baixos salários, que precisa de flexibilizar-se…E tanto que nós temos sido flexíveis…
Há quem diga que estes momentos de reflexão, em que são apanhados os nossos ministros, são perfeitamente normais. Pela minha parte considero-os úteis, quase as anotações de Napoleão no “O Príncipe” de Maquiavel. Aprende-se muito nas entrelinhas.



Eu que nasci para ser cão acabar assim, burro de burrice inteira, asno assumido, instrumento de carga de mercadoria desconhecida.
Também já me explicaram que não é obrigatório o crescimento económico ter reflexos na vida da maioria dos cidadãos, que o serviço nacional de saúde foi sabotado por terroristas internacionais, os mesmos das pontes sobre o Tejo (eles andam ai!...) e que a sua reconstrução vai ter a minha contribuição, se entretanto não me despedirem, ou dispensarem, ou desligarem…Parvoíce…Eu sou um burro e os burros não se desligam…Abatem-se!
É isso mesmo! Sinto-me como um burro…A presidência europeia, a presidência da rosa, as pétalas simbolizando os países da união sobre o azul do mar…
E eu burro com pretensões a cão, ladrando, zurrando…Acudi ao paço Real que matam o burro!

Foi o comentário da semana pelo inventado repórter Paulo Guerreiro, enviado especial no deserto para além do Tejo.

2007-05-16

E se tudo não passasse de um sonho?




Na Paróquia tudo está calmo. O Padre Miguel parou o carro no parque. O parque está vazio como sempre se encontra à hora da sesta. Deixou-se ficar sentado, de mãos agarradas ao volante, o motor ainda a trabalhar. Na rádio as notícias das duas terminaram. O locutor anunciava agora que o programa iria continuar com música. Tirou a chave da ignição com o intuito de eliminar ruídos. Os sinais luminosos no painel de instrumentos desapareceram, desapareceu também a indicação que o avisava da necessidade de encher o depósito. Levou a mão ao bolso à procura da carteira, quarenta euros em notas de dez e um papel de Multibanco evidenciando um saldo diminuto, maldito ordenado que mal chega…Dinheiro divino mas curto. Saiu do carro e fechou a porta com cuidado, procurou no comando o botão do fecho centralizado e activou-o. Ouviu o ruído automático das trancas. Deixou que o olhar acariciasse a viatura comprada em segunda mão, um Seat Leon em muito bom estado, um favor ao Sr. Padre. Nunca um objecto lhe tinha dado tanto prazer…
Junto ao passeio que cercava o parque, encontravam-se flores cuidadosamente plantadas pelos jardineiros da autarquia. Agora, na primavera, e depois da poda que as fez rejuvenescerem, perfumavam o ar e coloriam a atmosfera. Sentiu-se tentado a colher uma, que diria a dona Rosa se o visse de flor na mão, será que perceberia a nostalgia do gesto, a alegria infantil, a libertação da mente em relação aos dogmas, a atitude simples de um homem que também foi criança, ou antes acharia o acto despropositado, estragar assim o jardim da igreja, logo o Sr. Padre, “Olhe lá Padre Miguel, o senhor sente-se bem?”.
Se a dona Rosa estivesse lá para o questionar e se ele tivesse colhido a flor poderia responder-lhe que sim, que o cheiro daquela flor na sua mão lhe tinha trazido um enorme conforto. Não a colheu e entrou triste no pequeno átrio que antecipava o local de oração. Benzeu-se num gesto automático que hoje não tinha significado de motivação, apenas respeito ensinado. Sentiu vontade de chorar, sentiu o peso dos seus cinquenta e dois anos de idade, trinta anos de paróquias, de jovens raparigas que o tentaram, de velhas que o enjoaram, benzeu-se novamente perante o pecado do pensamento, o lamento, já não tinha idade para dúvidas…
…”-Faz-me o favor de um retorno certo. Eu espero, tu sabes que eu espero, sempre esperei…Amanhã? Porque não?!
-Serás capaz de aguentar as minhas demoras? As indecisões próprias de quem não tem certezas?! Será o teu amor tão grande que roce a imbecilidade?
-Dúvidas tu da minha capacidade para me anular, para te amar, incondicionalmente?....
-Duvido que te dures eternamente escravo, escravo de mim que não quero ser tua dona.
-Que provas te posso eu dar? De tudo eu desisto…Desisti…Resta-me a tua presença, as tuas palavras, o som delas materializando-te, o ter cheiro, tu…
-Doentio esse amor que construíste. Não posso continuar a ser personagem nessa história, nunca poderei garantir um final feliz para a tua vida.
-E quem pode?...
-…Nem tão pouco a esperança que tal pudesse suceder.
-Nunca te pedi isso, apenas que me deixes sonhar, sonhar este amor que não existe, se necessário morrer por ele…
-Não sejas trágico, patético.
-Não é necessária a ofensa.
-Tu obrigas-me a ser assim. Eu não gosto de ser pressionada…Gostava de poder ser tua amiga…
-Tu és minha amiga, a minha maior amiga…Terei culpa de amar a minha maior amiga.
-Não terás culpa do amor mas por ele a amizade pode ser destruída…Se não o foi já…”
Sim…Nessa altura teve dúvidas…Não tivesse havido a recusa e a vida teria sido diferente…Qual o problema da idade, o que são quinze anos quando se ama…Ele dezassete, ela trinta e dois, madura de dois filhos e três relações frustradas…
A quem se confessa um Padre?
O Padre Miguel não vai ouvir confissões, hoje não é dia para essa tarefa, penosa tarefa de ouvir os outros pecarem por ele, pecados pequenos, outros maiores, mas nunca de mortes ouviu testemunho.
Miguel hoje não se sente Padre…Sente-se criança, com saudades da terra, o cheiro lembrado que faz chorar, o cheiro que nos guia quando a vista nos engana…
Sentou-se na primeira fila, defronte ao altar, à Cruz, Cristo que não está lá mas se pressupõe…Que interessa se existiu…A história existe e é Linda, Bela, Pura, o limar dos Evangelhos na unificação factual, o clímax da virtude e do sacrifício, a declaração carnal da existência do Supremo, do Divino…
Quantas vezes falou em seu nome?...
“De que falei eu?...E se tudo não passasse de um sonho?...De quem este corpo que eu comi, este sangue que eu bebi, esta memória que não me deixa fugir?....”
Na pia santa a água benta convida-o à penitência…Penitência…
…Ainda tem o número da irmã…Penitência…
O Miguel não vai ser Padre esta noite…

2007-05-07

Declaração




Por detrás o sol nasce cinzento
Reflexo polido
Esfera afagada.
Por fora o brilho que ofusca
A luz que não mostra
Contorno apagado.

Tenho o contorno na mão
No papel que o lápis suja
No meu dedo na areia
Na projecção da minha sombra
Na assinatura do poema.

Cresce
Criança velha
Da vida
Cresce
No sentido decrescente
No lugar poente
Para onde tudo cresce.

Cresce e perdoa-te
Porque crescer é pecado para ser perdoado.


O sol que nasce mudou de cor
Cinzento sou eu se não a souber
Olhando para ti
Minha flor
Meu amor.

Toca-me ao de leve
Leva de mim um bocado
Deixa de ti o que puderes
Para eu poder tocar-te.

Hoje vi a cabeça de um passarinho
Morto
Na primavera da minha rua
Na distância da árvore.

Hoje foi ele
Não fui eu
E eu estou feliz por mim.

Vou poder chegar a casa
E dizer que te amo.

2007-05-03

Fim de Semana

Teatro de sombras, ao Sul









Barragem, prisão de água
















Alentejo Vermelho, sonho ou alucinação?
(fotografias editadas pelo autor, barragem de Odivelas, Baixo Alentejo)

2007-04-30

Feriado vivo

Do dia vinte cinco de Abril tenho várias lembranças. A primeira das primeiras veio com a experiência festiva dos meus pais. Festejavam nesse dia o casamento, união acordada, paixão confessa em meados de sessenta. Aprendi o dia e entreguei-lhe um significado que durou até mil novecentos e setenta e quatro. No dia vinte cinco de Abril desse ano acrescentei-lhe outro. Tanto que esse dia me deu…Tanto que falar, que ouvir, histórias que todos tinham medo de contar. Todo eu sou depois, filho da liberdade. Só depois percebi a busca em minha casa, o meu pai indo embora, a minha mãe a chorar.
Dias atrás tentei escrever qualquer coisa sobre o assunto mas não fui capaz, faltaram-me as palavras para explicar. Indignação, talvez… Por feliz coincidência comprei o jornal “Público”, edição de vinte e oito de Abril de dois mil e sete, ano XVIII, nº 6238, e na página 45 deparei com o seguinte artigo, “Feriados vivos e mortos” escrito pelo José Pacheco Pereira. Este ano gostaria de ter escrito esse texto…”O vinte cinco de Abril é um dos poucos feriados vivos que ainda existem”, palavras que antecedem o título…”A manifestação popular do vinte cinco de Abril é uma não-entidade, um caso curioso de como uma coisa que existe não existe nem para os media, nem para a mecânica da opinião pública e publicada”…Palavras chocantes sem dúvida…Mas que dizer das comemorações do dia da Restauração, que dirão aqueles que desejam ser espanhóis nesse dia feriado, e que dirão os monárquicos no dia da implantação da Republica, mas quem se lembra?...Serão esses feriados vivos? Soubéssemos nós da nossa história e lembraríamos com menos asfalto e frenesim consumista esses dias.
Termina José Pacheco Pereira o artigo com as seguintes palavras, “Resta pois o único feriado vivo de carácter histórico e cívico, o 25 de Abril, porque continua controverso e divisor, politicamente pouco neutro e mexendo com a paixão ou repulsa das pessoas que o viveram e que ainda são muitas. Mas como em tudo, é só esperar que o tempo o mate. A entropia fará o serviço de reduzir o 25 de Abril ao 5 de Outubro, como reduziu o 5 de Outubro ao 10 De Junho e o 1º de Dezembro a nada. Ficou alguma coisa?...”. A esta pergunta o autor do texto responde, “Ficou e muita, mas perderá a data como referência e ainda bem, porque significa que teve sucesso depois de estarmos todos mortos.”. Pensei muito nisto… não seria desta maneira que finalizaria o artigo…Que ficou alguma coisa ficou! Se vai ficar depende do que ensinarmos aos mais novos…Mesmos depois de mortos…
Como também diz Pacheco Pereira “…A liberdade, algo tão abstracto porque felizmente ainda existe como o ar que se respira, ou seja, não se dá por ela a não ser quando não se tem.”.
Não sou do Partido Popular Democrático, que perdeu o Partido Popular para o Centro Democrático social e se tornou Social Democrata, ou do Partido socialista que substituiu o punho em fundo vermelho pela rosa, ou do Partido Comunista tornado CDU, talvez não seja de nada, talvez seja parvo…O que sei é que enquanto viver vou agradecer todos os dias aos capitães de Abril.

Nota: O Texto do Pacheco merece ser lido…O Social-democrata mais comunista que eu conheço.

VINTE CINCO DE ABRIL SEMPRE

2007-04-20

A Lagoa X (Finalmente o fim)

Difícil foi a tarefa de identificação. Por entre gritos e insultos lá conseguiram o nome de toda a gente. Alguns, conhecidos, apelavam a esse facto para obterem tratamento especial. As circunstâncias não o permitiam e esse apelo foi ignorado. Finalmente, presos os treze homens, puderam os guardas concentrar-se no pinhal e na lagoa.
Para fazer cumprir a interdição do acesso a esses locais foi deslocada a polícia de intervenção, agora que a situação no hospital estava sanada. Com os efectivos todos na rua, a GNR sentia-se impotente perante a onda de violência que se deslocou para a cidade. Dizia-se que havia mais mortos no pinhal e que as autoridades queriam ocultar a questão. Na verdade, por entre o mato, haviam mais dois cadáveres, mas as autoridades não tinham disso conhecimento, são um aproveitamento da situação. Quem provocou estas mortes quis misturar intenções, dispersar culpas, livrar-se de alguém incómodo.
Desconhecem-se as causas que levaram as águas da lagoa a mudar de cor. Sabe-se que os peixes morreram e as plantas apodreceram deixando por cima da água um cheiro azedo de decomposição.
Também o pinhal mudou de cor. Com o avançar da tarde levantou-se vento forte e aumentou o calor. Passavam trinta minutos das três horas. O fogo apareceu do lado do mar, do lado menos guardado, rapidamente consumiu os pinheiros.
Foram estas cores, estes tons de vermelho, que fizeram parar a violência humana. De todos os lados convergia gente e uma enorme multidão se juntou em silêncio à beira da via rápida. Do outro lado o fogo, entre eles a polícia de intervenção que lá ficara com a incumbência de vedar acessos. Acessos que pelos vistos não vedou. Embora habituados a estas andanças, alguns dos rostos destes homens, geralmente duros e insensíveis, mostravam uma perturbação anormal.
Pedro e Alice tinham ficado na cidade e procuravam acalmar dois grupos que se tinham envolvido em confrontos na paragem dos Expressos. A coisa não estava fácil, as pessoas facilmente se dispersavam recomeçando as escaramuças algumas dezenas de metros depois. As ruas largas e o terreno aberto não ajudavam a conter tanta gente e eles eram só dez. Fez mais o cheiro a queimado do que os seus esforços, na luta desigual que travavam. Os confrontos acabaram subitamente e as pessoas, como autómatos, dirigiram-se para o pinhal e para a lagoa. Pedro e Alice pediram novas instruções perante esta nova situação. Não tinham efectuado detenções e os feridos, se os havia, tinham desaparecido arrastados pelos desertores, pela forte ventania sem direcção definida.
Pedro vai saber da mulher, do filho mais novo, Alice vai com ele. Os outros guardas seguem em direcção ao inferno.
Ouvem-se as sirenes dos bombeiros. Momentaneamente cercado pela lagoa e pelo mar, o fogo investe violentamente contra a via rápida e desagua pelo lado sul por onde o pinhal se prolonga até aos viveiros, até ao tratamento de águas, até à rotunda.
Dos dois corpos que lá se encontram só o carvão é testemunha da sua presença, talvez os especialistas consigam descobrir identidades.
Na lagoa o peixe que veio à superfície para morrer, jaz boiando junto às margens. Também as enguias e os lagostins lhe fazem companhia, fauna morta, feita fronteira entre a terra e a água. Vermelha, a água reflecte o vermelho do fogo. Do pinhal, nuvens negras de fumo, rodopiam em pequenos tornados. O calor é insuportável e o vento decide empurrar as chamas de encontro ao asfalto. São as faúlhas que o atravessam pegando fogo ao mato rasteiro do outro lado, do lado da cidade, na periferia sul.
Acossados pelo fogo os polícias de intervenção empurraram a multidão. A princípio estupefacta, a mole humana dispersou em direcção à cidade. Pequenos grupos de corajosos cidadãos organizaram-se junto às primeiras habitações decididos a defendê-las.
Mas depois de atravessada a via rápida as primeiras casas tornaram-se cordeiros dispostos ao sacrifício. Vê-se gente acorrer num atropelo de urgência, na defesa dos seus lares.
Sem razão para estarem presentes, os elementos da polícia de intervenção foram desmobilizados. Corporações de bombeiros das povoações vizinhas apareciam de todos os lados. A coordenação era difícil e ainda se encontrava muita gente nas ruas.
Travado no lado sul pela rotunda e pela colaboração dos trabalhadores de duas fábricas perto do local, o fogo ocupava-se agora a queimar as casas na orla da cidade. Mesmo com os meios dispersos os soldados da paz tentaram salvar as habitações que ainda não tinham ardido. Entretanto, no lado norte, mesmo junto à lagoa, o lume encontrara uma pequena passagem de mato entre as águas e a estrada ameaçando várias pequenas quintas ao longo da costa. Libertara-se o inferno e este tudo consumia.
Desesperados, antigos rivais, lutavam lado a lado na tentativa de travar a destruição. Tivesse esta união vindo mais cedo…..
De como tudo recomeçou passados tantos anos há-de ficar um mistério para as autoridades e para a população. Eu, no entanto, sou o narrador e tenho por obrigação saber mais, e do que sei vou-vos contar. Sei que as duas crianças foram mortas por vingança, vingança do Rafael. O Rafael que não resistiu às insinuações do caseiro, pai das meninas, e que frequentava a sua filha lá para os lados da rotunda. Ele sabia o que custava ter perdido uma filha…O outro havia de perder as duas…Não abusou delas, não era essa a intenção, destruiu-as por dentro apenas para camuflar o crime. Nessa mesma noite, no café do Aníbal, encontraram-se os dois e numa troca de olhares o caseiro percebeu quem o tinha feito. A espera foi feita nessa mesma noite, a asfixia foi rápida, também ai a destruição interna do cadáver foi pormenor de encobrimento, pormenor que não teve com Dona Inês que sabia o que Rafael tinha feito e foi à casa do caseiro para lhe contar. Este matou-a com uma faca e com a ajuda da mulher deixou-a junto à lagoa.
A verdade destas mortes ficou selada quando o casal sucumbiu perante o fogo. Na tentativa de salvarem a sua pequena quinta deixaram-se cercar e morreram carbonizados….
As outras mortes foram fruto da situação, assim como os conflitos e ódios que germinaram entre a população.
Ficam duas perguntas…E o fogo no pinhal? E a água envenenada? Terá sido castigo divino?
Talvez as respostas estejam no empreendimento turístico que vai ser construído no local onde existia o pinhal…Junto à lagoa…

Fim

2007-04-12

Três pequenos textos sobre a vida… Sem nexo…




De faca na mão à procura do destino risquei todos os carros que encontrei no caminho da estação, carros grandes e pequenos, de cores híbridas, disfarçadas pela noite. Faca de cozinha com vinte centímetros de lâmina, os alarmes tocando nas pressões maiores, nas penetrações profundas. Pessoas à janela e a faca que desaparece no blusão de ganga e o blusão de ganga desvanecendo-se no fundo da rua, tal como os carros todo ele híbrido na cor. As montras apelativas e as marcas nas montras, as marcas de gordura do meu nariz no vidro fabricado vitrina, procurando tocar nas outras marcas. A polícia que passa depressa, o desinteresse despercebido, figura diluída, alguém que grita “Foi ele!!!”, demasiado tarde…O movimento do corpo deixa cair a faca que volta a riscar na rua seguinte. Um casal em silêncio, olhos nos olhos com a loucura, o branco demasiado branco, dois círculos pretos, aberturas escuras, buracos negros desesperando por luz. O casal que é sombra, tudo é sombra, também eu sou sombra no meio de sombras. A estação está guardada, por guardas, por sistemas de vigilância, por silhuetas suspeitas que me fazem recuar, o recuo físico da lâmina no avanço do resto do corpo que atravessa o átrio rumo a nenhures…








Inventei margens junto ao rio, só para ir de uma à outra. Não construí pontes nem jangadas, mergulhei nas águas, ontem revoltas, hoje paradas. Nadei até me cansar e quando me cansei nadei mais…Tenho lama e lodo nas mãos, marcas de quem esgravatou para subir. Nas unhas sujas bocados das margens que alcancei. Percorri terrenos alagados onde enterrei os meus pés, fossem eles de barro e teria lá ficado. Tenho sede dos pântanos, dos mosquitos e suas bombas de sucção, motores insaciáveis na imensidão do meu sangue. Cortei canas por apelo, por amor à vara verde. Soubesse eu tocar e teria feito uma flauta. Das varas fiz bordões que levaram os meus passos, passos que me levaram…







Hoje jantei junto à televisão. Ligada que estava informou-me das coisas, coisas importantes. Disse-me de cursos de ministros, de professores de ministros, executores de politicas, da existência de um título que os defina, lhes dê importância. Falou-me de outros que não são ministros mas desejam ser ministros, da sua indignação perante a falta de confirmação das valências do que entre todos é o primeiro. Explicou-me que no ecrã as pessoas tornam-se mais pessoas, que entre filhos abandonados existem uns mais abandonados que outros, com pais mas sem pais adoptivos presos, sem o apoio da nossa opinião. Fez-me acreditar que precisamos de mais um aeroporto, porque três é a conta que Deus fez, porque sim, porque mesmo sem dinheiro podemos fazer romarias nesses locais de culto, olhar o progresso e sentirmo-nos nele. Convenceu-me que na agricultura os problemas são os agricultores, que não souberam semear o dinheiro que receberam, fadado que estava ao crescimento, desperdício de boa vontade. Explicou-me que lá fora acreditam no caminho que seguimos mesmo que nós não saibamos qual é, tudo uma questão de fé. Mostrou-me que na assembleia também existem seres humanos com virtudes humanas e defeitos humanos (Um abraço à Odete pela sua maneira honesta de ser, mesmo quando é inconveniente…Vou sentir falta), que também se vão embora com mais de vinte cinco anos de trabalho e possivelmente sem entrada directa numa das grandes empresas sedentas de assessores, paciência…Contou-me a história de um parto numa ambulância, no Alentejo, a mim que não sei de ambulâncias mas sei o que é levar uma mulher a parir, a cem quilómetros de distância do local de residência, noite passada numa pensão, “Ainda não é hoje, o melhor é ir-se embora e vir amanhã.”, eu que não fui, que a deixei lá para ir dormir num quarto de aluguer, “Pode vir que vai nascer.”, sete horas da manhã, “Tenho tempo para pagar?...”, passaram-se mais de seis anos e esta já era a realidade, mesmo quando fizemos um cordão humano e a ministra da saúde, Maria? De Belém? Que nome mais apropriado, nos disse que tínhamos de foder mais, não nascíamos em número suficiente….Poderemos nós morrer em número suficiente para garantir as reformas?
Passaram sete horas desde que abandonei o ecrã amigo. Depois disso fiz o resto do serviço, desliguei equipamentos e luzes, fechei portas, entreguei chaves vim para casa e estou a escrever (Decididamente a hora não ajuda). Apeteceu-me desabafar…Os textos ainda não estão publicados mas é esse o seu destino…Hoje, ao fim de uma semana sem me ligar ao mundo deixo aqui o meu testemunho.

2007-04-04

A Morte é...

A morte é vida camuflada,
Uma alma desnivelada,
A luz invisível de uma vela,
O choro de alguém a uma janela,

Um lenço preto estendido numa corda,
O sono de alguém que não acorda,
Um monte de terra e uma cruz,
O brilho de ouro que não reluz,

Uma ajuda que nunca vem,
Um lamento vindo do além,
Um charco de água gelada,
Uma conversa cortada,

Uma vida que desaparece,
O meu olhar que não te esquece,
O teu seio, o teu calor,
A recordação de te perder, a dor.


Vinte anos se passaram, foi em Março de 1987 que me deixaste.
Para ti esta adaptação (o original era bem mais duro...O tempo suavizou a tua falta mas não a anulou)…Um beijo do teu filho Paulo
.

(À memória da minha MÃE)

2007-04-02

A Lagoa IX

Grandes foram as discussões e trocaram-se palavras azedas, pouco dignas de tão distintos intervenientes. Havia quem quisesse cortar o mal pela raiz, lotear, vender, ganhava-se dinheiro e acabava-se com a insegurança. Do outro lado a crença, o respeito pelo local.
Por falta de consenso aceitou-se a interdição temporária dos dois locais, vigilância apertada. A falta de meios dificultava esta opção mas o responsável a quem caberia a tarefa garantiu-a. Como sempre seriam os peões a pagar a factura neste jogo de xadrez. Mas os acontecimentos precipitavam-se, os ânimos estavam exaltados e enquanto estas decisões eram ponderadas, perto do pinhal, várias pessoas confrontavam-se violentamente. Conta quem esteve presente que o ódio prevaleceu durante a contenda e além de vários feridos graves encontravam-se duas pessoas mortas. Ainda a reunião não tinha terminado quando as noticias chegaram. O isolamento da área tornou-se urgente e todos os meios foram convocados. Também a polícia de intervenção foi chamada como forma de acalmar os vários grupos que se formaram nas imediações do local. No Hospital para onde tinham sido levados os feridos, acompanhantes rivais envolveram-se em confrontos. Pacientes desprevenidos foram agredidos, enfermeiras, bombeiros, pessoal da segurança e forças policiais corriam em todas as direcções sem conseguir travar os tumultos. Ouviram-se tiros e no meio da confusão um maqueiro foi atingido. A situação só ficou controlada quando chegaram as duas carrinhas da polícia de intervenção, deslocadas que foram, à pressa, do seu destino original. Pedro e Alice ainda dormiam, mas por pouco tempo. Quem acordou o Pedro foi Afonso que tinha ido almoçar a casa. Chegara excitadíssimo, comendo as palavras enquanto contava o que sabia ao pai. Alice acordou com o telefone, monótono chamamento que ela custou a interpretar, primeiro lá no fundo, primitivo chamamento dos sentidos, sem identificação e sem urgência, depois mais próximo, estou aqui, ouve-me Alice, acorda, alguém precisa de ti. Pedro telefonou à mulher, professora primária na escola P2, perto do pinhal. Por lá tudo bem. Do Hugo sabia-o em Lisboa, numa visita de estudo, por via das dúvidas também lhe telefonou, “Acordaste tão cedo para me telefonar?”, “Foi a tua mãe que me pediu…”, “Pai, não sabes mentir.”, “Precisava de te saber bem…As coisa aqui estão complicadas…”, “As seitas?!”, “Sim…Não sei bem mas penso que sim. Possivelmente vou ser chamado. Quando voltares telefona-me.”, “Não te preocupes.”, “Promete-me que esta noite não sais de casa.”, “Eu depois telefono-te, um beijo…”, a ligação interrompida, teria de ser a Gabriela a cuidar deste caso.
Encontraram-se no posto, quase vazio. As ordens eram claras, dentro em pouco começariam a chegar pessoas para ser identificadas, “Quantos?”, “Ninguém sabe ao certo mas parece que esta merda vai ficar cheia.”, “E onde é que os metemos?”, “Logo se vê…”. As celas estavam atafulhadas de papelada e a primeira coisa a fazer foi limpá-las, não no sentido de limpeza mas no sentido espacial da questão. Tanta porcaria que para ali havia…Eram três celas, em condições normais dariam para doze detidos a julgar pelos dois beliches que faziam parte do mobiliário de cada uma. No rádio do posto as noticias eram boas e más. No Hospital a situação estava controlada mas para os lados da Lagoa não havia gente suficiente e foram detectados vários grupos que se dirigiam nessa direcção. Para contrastar com os acontecimentos o tempo estava óptimo, sem nuvens, calor até demasiado tendo em conta a época e um sol que parecia indiferente à agitação humana, que tem ele com isso?...Também me parece!
A primeira carrinha a chegar trazia treze pessoas, todos homens, algemados e cercados por guardas que mostravam ostensivamente as suas armas automáticas. Alguns dos presos traziam escoriações, algumas delas bastante feias. Do Hospital tinham vindo sem ser tratados, não fora esse o motivo que os levara lá. Percebia-se que não pertenciam todos ao mesmo grupo, os olhares de morte não enganavam, teriam isso em consideração quando os arrumassem nas celas.


(Continua mas está quase no fim....)

2007-04-01

Jim Morrinson


Influênciado pelo AD voltei a ouvir alguns dos meus discos de Doors, em vinyl...Enquanto os ouvia fui desenhando...O resultado está à vista...Não é brilhante mas é honesto.
Foi para mim uma das maiores referências musicais e não só...
Um abraço a todos.
P.S. Vejam isto como uma simples homenagem...

2007-03-27

Escolher o melhor

Para ser justo acho que o canal “um” prestou um serviço público ao realizar este programa/concurso/escolha/seja lá o que lhe queiram chamar. Falou-se de Portugal, de Portugueses, realizaram-se documentários interessantes e fizeram-nos ler a História, a nossa História, pelo menos eu revisitei-a. Não quero entrar em polémicas sobre a originalidade, os critérios, a votação, o resultado, para mim interessa-me sobretudo o que nos foi fornecido em termos de informação irrevogável e comprovada ou no mínimo consensual.
De Fernando Pessoa voltei a apaixonar-me, de Aristides fiquei a conhecer pormenores, de Camões a irreverência e a genialidade à época, antes dele dois iluminados, um Rei, acordou com os espanhóis a divisão do mundo conhecido, o outro Infante, via para além do mar. Houve quem neles acreditasse, caso do Vasco, outros que os cantaram, Camões, também Pessoa. Na origem o Henriques, o primeiro dos Afonsinos (Leiam o “Cavaleiro da Águia” de Fernando Campos, um romance em que se aprende muito) o mestre de diplomacia que convenceu os cruzados a fazer a guerra santa em Portugal, em Lisboa, na conquista. Mais tarde Pombal, a organização após a destruição, a organização do ensino, quase um plano de contingência.
Chegamos ao século XX, povo gasto, de brilho baço, desse tempo escolhemos QUATRO, Pessoa, Aristides, Cunhal e Salazar, um sonhador, um moralista/humanista e dois antagonistas que ainda hoje nos atormentam.
Dos resultados da votação percebe-se imediatamente que não temos memória, os três primeiros viveram no século vinte e os dois primeiros existiram em oposição (o segundo ao primeiro). Se olharmos para o facto de o primeiro ter perseguido os dois segundos apertamos ainda mais a malha da memória. Só esses três Portugueses arrecadaram mais de 70% dos votos. Para mim isto é um facto incrível mas que revela o que nos vai na alma. Ainda estamos divididos, por políticas, por clubes, por sei lá mais o quê, a tal ponto que deixamos de ser coerentes, independentes.
Não votei, acho que não se pode votar a história, fiquei-me pelo conhecimento adquirido ou relembrado.
É esse o agradecimento ao canal “um”, obrigado por cumprirem com a vossa obrigação!


P.S. Poderão algumas pessoas estranhar a minha falta de indignação em relação ao primeiro lugar (isto é para ti Titá), mas não era esse o objectivo deste post. Li História e isso agradou-me, ponto final….Talvez…..