2007-09-24

O Automóvel IV

Olhou em redor, cento e oitenta graus de cabeça, o suficiente para se sentir sozinho. Rodou a chave mais uma vez. Um clique e novamente o silêncio, a presença sonora do que se ouve à volta, um registo suave que acompanha a paisagem. Está indeciso, valerá a pena olhar para o motor, tentar percebe-lo, no fim de contas há trinta anos que se conhecem. Se fosse a bateria seria fácil. Procurou o telemóvel na esperança de este ter a bateria carregada, algo que raramente acontecia quando era urgente a utilização. Não vai ser diferente desta vez e a alternativa vai passar pelas pernas do Zé. Tirou a mochila com meia dúzia de livros, os documentos e fechou a carrinha. Afinal não me livrei duma torreira. Não se sentia em má forma, tivesse o tempo mais fresco e o inconveniente da avaria até que seria um bom pretexto para uma caminhada no campo. O restaurante não ficava longe, dois mil metros numa alameda entre pinheiros e a “vacaria” que se adivinha, não mais de quinze minutos, porquê a medição do tempo, retratar o espaço? Ambos relativos pareceram-lhe maiores, a ele que abusou da sua relatividade. Explicando melhor, o Zé não é homem de finanças abastadas, no Zé nada é abastado. Mentira! Existe uma coisa onde o Zé não encontra limites, o seu olhar é orgânico. Voltando ao assunto, o Zé é um teso. Moço bem entrado nos trinta, digamo-lo por simpatia, o ordenado é curto na empresa onde nunca subiu, empresa de segurança que lhe garante os horários mais estranhos nos locais mais impróprios. São portarias de fábricas de noites desertas, estabelecimentos comerciais em hora de ponta, Hospitais e Clínicas de gente doente, enfim, tudo o que lhe mandem fazer, o Zé não é moço de refilar. Assim sendo, a avaria do seu automóvel pode tornar-se um sério problema económico que o poderá privar da sua liberdade. Fez todo o percurso a pensar no assunto, não foi a primeira vez. Também o pai e a mãe tiveram um fim, um dia seria a vez da sua carrinha. O último membro da família, que ele considerava chegada, poderia morrer. Afastou os pensamentos negros, tinha dinheiro suficiente para ir à oficina do André, a dificuldade existia em arranjar peças. Com uma regularidade pendular o Zé levava a Toyota à oficina do André, uma espécie de amante que mantinha uma relação vergonhosa com a sua carrinha e que lhe levava muitas das suas poupanças. Foi assim o trajecto do Zé até ao restaurante, amargurado, receoso, repleto de preocupações, logo ele que detesta preocupações. A fome dissipou-se, o estômago encolheu, só a cabeça crescia, do tamanho dos seus medos. Avistou a placa de faca e garfo apontada. O Zé já só pensava em arranjar um telefone de onde pudesse mandar um pedido de socorro, todo um fim de semana estragado. Ainda por cima a próxima semana seria no Hospital, maldito Hospital, se pudesse recusar, mas não pode.
Alegrou-se ao ver a longa casa rasteira caiada de branco, debruada a azul, pequeno toldo na porta de entrada, letreiro discreto avisando do nome e do que ali se fazia. Sentia-se fatigado, mais da cabeça do que do corpo, por esse motivo deixou-se ficar um pouco cá fora antes de entrar. Organizou as ideias, primeiro iria comer, de nada serviria esperar de barriga vazia, contrariar o pessimismo, relaxar, depois o telefone, um qualquer mecânico que o tentaria intrujar, com sorte ficaria com o problema mecânico resolvido e com menos uns Euros na conta mensal, pelo menos assim o esperava. Foi com o espírito renovado que entrou no restaurante e escolheu uma mesa para se sentar. Ainda hoje está para saber se foi ele que escolheu a mesa ou se esta lhe atravessou o destino insinuando-se tentadora, junto à janela, cheia de luz, para duas pessoas, um pouco afastada das longas mesas de seis e quatro pessoas, beneficiando do facto de uma coluna interior a isolar do resto espaço. Sentou-se e apreciou o aconchego daquela luz, local ideal para observar todo o campo em volta. Ao longe as vacas procuravam abrigo junto das arvores isoladas, mancha castanha e verde marcando a paisagem. Sentiu as palavras da empregada. Sentiu-as sem as ouvir, como se sente a presença de algo que está onde deveria estar, sabe que a intenção das palavras vem acompanhada de uma lista, bastará sorrir e agradecer, obrigado, se calhar nem tanto. Esta era a única mesa de onde se podia ver distintamente o balcão. Estava situada no ponto exacto onde este, fazendo um ângulo de 45º, escondia da sala quem nele se quisesse apoiar. Foi por este motivo que enquanto bebia o café deixou o seu olhar orgânico repousar numa mulher ao balcão. Já tinha telefonado a um mecânico, “amigo” do dono do restaurante que lhe garantiu ajuda dali a uma hora. Ficava portanto com uma boa meia hora sem nada para fazer. De tanto a olhar ela correspondeu e ele receoso baixou a cabeça sem reparar que ela sorriu.
Decidiu pagar ao balcão e o dono do restaurante, dirigindo-se à mulher, arranjou-lhe boleia até à carrinha. Embora envergonhado não teve coragem para recusar. Quase sem palavras e apenas sabendo que lhe chamavam Xana deixou-se arrastar até um velho Landrover. O caminho até à sua Toyota seria rápido. Decidiu aproveitar e olhar para a mulher, que descobria agora, muito bonita. Começava a sentir-se mais à vontade quando ela lhe perguntou pela carrinha, efectivamente já deviam ter chegado ao local onde a tinha deixado. Ao olhar para trás apercebeu-se da árvore que escolhera para a estacionar. Debaixo dela nada se via. Ainda em andamento abriu a porta do jeep e saltou.

(cont.)

2007-09-06

O Automóvel III

Sábado, Verão, uma linda manhã de sol. O “lindo” para as cores claras, brilhantes, o branquear dos tons, a sensação extrema de luz, quase o desconforto, bem ditos óculos escuros.
A Toyota encontra-se imóvel, meio asfalto, meio terra, areia. O ar está salgado, sabe a mar. Estranha névoa que percorre a linha da praia sem nunca passar as dunas, sem nunca ofuscar o sol, traço de vertigem na paisagem costeira. O Zé está de olhos fechados no lugar do condutor. Tem no seu colo um livro aberto. As mãos sobre o livro tremem ligeiramente. A respiração é pausada, por enquanto.
Agora que já é mais tarde, pela cara do Zé escorrem gotas de suor, acelera o ritmo cardíaco, o ar entra e sai mais rápido, mexe as pernas, cai o livro. Acorda assustado, incomodado com a falta de espaço, com o calor, Que brasa!
Ao sair da carrinha reparou no livro aberto, Herberto Hélder, do mundo, “Esta coluna de água, bastam-lhe o peso próprio, o ar à roda,”, a garrafa, com esse precioso líquido, em cima da mesa do restaurante no dia anterior. A decisão de abalar para sul, por dois dias, para ler sob um céu aberto, horizonte sem arestas. Hoje fecha com cuidado o livro de poemas e arruma-o, guarda-o na mochila, esconde-o, hoje é ele o poeta. Antes fosse. As palavras nunca lhe fluíram. Oralmente desaparecem por entre grunhidos e trejeitos faciais. Na escrita emperram no branco da folha. Tantas as vezes que ideias brilhantes se dissiparam na aridez da caneta e do papel. Desistiu de o fazer. Deixou que o olhar fosse a sua poesia.
Percorre a passadeira de madeira que o leva para o primeiro desnível, onde a vegetação é verde seco e as flores arranham. A areia é grossa, talvez nova, ainda pouco rolada nos ciclos marítimos. Sente-a nos pés à mistura com conchas, umas inteiras, outras partidas, todas juntas no limite da maré anterior, perto está a rebentação, escondida no segundo desnível. As ondas desfazem-se na areia numa raiva trepadora que morre na forte inclinação da praia. Difícil entrar e sair, lá dentro tudo é mais calmo, mais amplo, mais bruto, dois metros e deixa-se de ter pé, que magnifico lugar para relaxar, deixar os olhos fazerem magia, soltar a poesia dos azuis do mar, dos azuis do céu. Olhá-los demoradamente, as palavras que não ditas, não escritas, as palavras olhadas, os azuis que o fazem sentir bem, que não é um estranho no mundo, que é normal querer isolar-se, não querer companhia, que transformam tudo isso num belo e efémero poema, como se a palavra efémero lhe pudesse aumentar a beleza. Não fosse o estômago e o Zé teria torrado ao sol. Quase nunca a fome o convence, não é escravo da comida nem das horas para comer, para se sentar à mesa, quase sempre sozinho. Dias não são dias, está com fome, porque não aproveitar? Sentiu-se satisfeito com a sua decisão. Enquanto palmilha o caminho em sentido contrário vai inventando menus, cardápios com nomes a cheirar a Verão, nomes de peixes, peixes abertos no prato, o azeite, o vinagre, só uma gota, para tirar o doce. Apetece-lhe vinho, vinho branco muito fresco, está de apetites, ele que raramente bebe bebidas alcoólicas, muito menos quando conduz. Se vai aproveitar a fome, também vai aproveitar a sede. A carrinha está perto, apercebeu-se que acelerou o passo e sorriu, Que gesto mais impróprio, nem pareço eu! Lançou um último olhar às dunas antes de engrenar a primeira. Fez a inversão de marcha com cuidado e iniciou a subida em segunda. Já no alto, e quando a estrada inicia um serpentear pelo pinhal, o motor falhou. Aproveitando a descida procurou uma sombra, uma daquelas enormes árvores seria sua amiga. De falha passou a silêncio. O arranque eléctrico não fazia mover a mecânica. Merda!


(cont.)