2007-11-15

O Automóvel VIII

Ainda está no jeep. Daí a pouco entrará no quarto de Xana.

- Apetece-te alguma coisa?
- Deitar-me. Tenho o corpo dorido, sinto-me cansado.
- Queres comer? Posso trazer-te uma fatia de pão com manteiga, um chá, para enganares o estômago.
- Leite quente! Se tiveres um pouco de leite quente com café eu agradeço.
- Arranja-se. Mas tens de comer, nem que seja uma bolacha.
- És obstinada. Não sei se aguento até tu voltares.
- Aguentas. Para já vou buscar um pijama para ti.
- Eu posso dormir assim.
- Mas eu não quero! O pijama vai-te ficar largo, os meus irmãos são bem maiores que tu.

O Zé bocejou.

- Aguenta um pouco que eu venho já. Liga a televisão mas baixa-lhe o som.
- Para não os acordar?
- A quem?
- Aos teus irmãos.
- Agora sim estás a ser parvo.
- Não te esqueceste.
- É raro fazê-lo.
- Mas eu estou a falar a sério. Eles não vão ficar chateados por tu trazeres um estranho para casa, ainda por cima para dormir no quarto da irmã?
- O que eu acho é que estás com medo deles, ou então de mim.
- És capaz de ter razão. Não estou habituado a dormir na casa de outras pessoas.
- Não precisas preocupar-te, nós somos muito independentes. Vivemos juntos e sabemos defender-nos como família mas no que diz respeito às nossas relações pessoais não interferimos. Nem sei se eles estão em casa.
- E os vossos pais?
- Morreram, mas eu não quero falar nisso. Vou buscar-te o pijama.

Xana cortou assim a conversa, de forma rápida, abrupta. Saiu de cabeça baixa, com gestos desenvoltos mas de cabeça baixa. A morte dos pais ainda lhe pesava no coração. O Zé ficou sentado no sofá. Olhou para a televisão mas não teve coragem para a ligar. Tinha ficado com o comando na mão desde que pegara nele para se poder sentar, sem saber porquê não o largara desde então. Olhou depois para a cama, cama pequena para uma só pessoa e começou a preocupar-se, onde iria ele dormir, onde iria ela dormir. Sentiu um grande incómodo pelo desconhecido que a situação provocava. Ele que não gostava de ser pressionado a reagir. E a carrinha? A sua carrinha. Queria vê-la, amanhã de manhã seria a primeira coisa a fazer. Xana voltou a entrar no quarto com um pijama na mão, umas calças, uma camisola.

- Está amarrotado porque tive de o ir buscar ao cesto da roupa por passar a ferro. Mas tu não te deves importar com essas coisas. Veste-o enquanto eu vou aquecer o leite para ti.

Não o deixou responder, deu a ordem e voltou a sair. Que mulher, pensou o Zé. Sentia-se intimidado, frágil. Obedeceu, acima de tudo para não ter que justificar a recusa ou inacção perante a ordem da Xana. O pijama era realmente grande, duas peças, calças e camisola de um azul desbotado, comido de lixívias e detergentes. O tecido, de meia estação, não era desagradável mas não o conseguiu identificar. Deixou-se estar sentado boiando na roupa de um mano que não era o seu. Esteve assim um bom bocado até começar a ouvir vozes, de homem, primeiro, da Xana, depois. A voz do homem destilava bebida alcoólica, a da Xana, reprovação. Pareceu-lhe que discutiam. Ao fim de um bom bocado as vozes calaram-se. Sentiu medo que entrassem pela porta do quarto e o vissem naquele estado, farrapo humano, ressacado de medicamentos, tristezas e outros azares, vestido para dormir com roupa que não é sua, sem justificação credível para a sua presença a não ser a vontade de Xana. A vontade de Xana. Qual seria a vontade de Xana. Nesse momento abriu-se a porta e o seu coração quase parou.

- Desculpa a demora. O teu leite já deve estar frio, vais ter de o beber assim.

Esboçou um sorriso que não lhe disfarçou a preocupação estampada na fonte enrugada. Tinha um sorriso bonito.

- Não faz mal. Está tudo bem.
- O meu irmão mais velho está a cair de bêbado. Veio a casa buscar dinheiro e quer sair outra vez, vou ter de ir falar com ele.
- Espero que ele te ouça.
- Eu também.

Após esta sentença Xana apressou-se a sair do quarto mas antes lançou-lhe:

- Podes deitar-te na minha cama que eu logo me desenrasco.

O Zé não lhe respondeu. A cabeça doía-lhe. Bebeu o leite lentamente, não tinha café, não estava frio, não tinha bolachas. Rendeu-se à cama, devagar, por cima dos cobertores. Acariciou os lençóis e sentiu o odor de mulher. Num impulso lento, se tal existe, enrolou-se neles e assim adormeceu.

(Cont.)