2008-05-20

Enganos I

Levado por falsas conversas, argumentos enganosos, cavalos de Tróia em palavras de madeira, o logro no seu interior.
Prometem-lhe que sim, que pode vir a ficar. Por enquanto o recibo, as férias sem dinheiro, o Natal sem prendas, as moedas que ganham importância, contam-se primeiro os Euros, depois os cêntimos, depois os passos para casa dos pais, os dela, os dele, as escassas reformas que sustentam a sua actividade mal paga.
Ele espera porque não vê saída, porque se esconde na traição das palavras, veículos blindados, armas mortíferas que se habituou a odiar. Espera a conta ao balcão de um café de centro comercial.

Ela também espera. O seu quarto emprego acabou e espera pelo quinto. O curso de sociologia não ajuda, “Não precisamos de gente com curso.”, atender um telefone, dar recados, tirar fotocópias, distribuir memorandos e ordens de serviço, ser bonita e gentil, arranjada o suficiente para ser agradável ao senhor Doutor. Não será difícil enquanto a beleza dos seus vinte e seis anos permitir. “Vive com alguém? É casada! E filhos? Pensa ter filhos?”, “Não, de maneira nenhuma, nunca antes dos trinta.”, sim claro que pensa, pensa nisso todos os dias. No outro dia pegou no bebé da vizinha, um belo moço com quatro meses. Cresceu-lhe uma vontade do fundo da carne, vontade de ser mãe, vontade de amamentar aquele filho que podia ser seu, “Os miúdos são uma chatice, primeiro quero viver a vida. Mais tarde logo penso nisso”, “E o seu marido, o que pensa ele?”, “Estamos em total sintonia”, sim ela quer e ele não, ainda não. E quando fala nisso o corpo a pedir, a mão que inconscientemente repousa no ventre como que a sentir.
Vai começar amanhã, falaram-lhe num contracto mas os primeiros meses são com recibo, “Sabe como funciona?”, “Sim, sei!”, o meu marido está na mesma situação há três anos, a minha melhor amiga também.

Pagou a conta e saiu. Sente-se cansado, cansado de respirar ar reciclado: Está quase na hora de voltar ao escritório, cinco minutos a pé pelo meio do trânsito. Puxa por um cigarro e antes de o acender olha instintivamente por cima do ombro, “Voçê promete-me que vai deixar de fumar?”, “Claro senhor Gonçalves, já fui ao médico e tudo.”, inspira profundamente aquele fumo nicotínico, sente uma ligeira tontura, uma sensação de agradável relaxamento. Retarda o passo, aprecia o cigarro na mão e retira-lhe a cinza com um sopro enérgico. Ainda ontem andava a estudar, cinco anos na engonha numa Universidade Particular, o curso não acabado, a imposição dos pais, “Não acabas o curso vais trabalhar que a gente não consegue aguentar, o mês passado já nos atrasamos na renda.”, faltava só um ano, o mais difícil, aquele em que a cabeça só queria noite. Foi na noite que a conheçeu. Também a ela faltava um ano. Ela acabou-o, ele foi trabalhar. Foi depois da queima das fitas que marcaram o casamento, os pais de ambos assim decidiram e eles cegos pelo amor assim aceitaram, não seria por causa de um papel que a iria perder. Um “Não” dos pais dela e ela desistiria dele, incapaz de confrontar os seus progenitores.

Passou primeiro pela casa da mãe para dar a novidade, o Ricardo saberia depois quando ela se vestisse para o receber à noite e o convidasse para jantar naquele restaurante mais caro ao fundo da rua. Sentia-se aliviada com a possibilidade de nesse mês não precisarem pedir dinheiro a ninguém. Talvez com esse alívio voltassem a fazer amor como das primeiras vezes.



P.S. Voltei! Uns dias depois...

2008-01-11

O Automóvel X (O FIM)

A polícia entrou de repente, “Deitados no chão, já! Mãos atrás da cabeça!”. A Xana empurra-o aos gritos e tenta chegar à porta. Ouvem-se tiros de pistola. Ele tenta protegê-la com o corpo. A cabeça que não seguiu o movimento envolve-se de tonturas, o desmaio, onde estou?

Uma enfermaria, tudo branco e o silêncio, “Onde estou?”. Uma enfermeira que se aproxima enquanto recomenda:
- Deixe-se estar deitado que eu vou já ter consigo!
- Onde estou?
-No Hospital.
- O que me aconteceu?
- Foi uma rapariga que o trouxe. Segundo ela, lançou-se do seu jeep em andamento, bateu com a cabeça no asfalto e desmaiou. Tem a cabeça partida e o corpo todo esfolado, de resto está bem. Só precisa descansar e ficar mais umas horas em observação. Que raio de ideia a sua, lançar-se de um automóvel em andamento. O susto que deve ter pregado à pobre da moça.
A enfermeira tenta ajeitá-lo na cama e impedindo-o de se levantar.
- E a Xana?
- A Xana?
- A rapariga que me trouxe.
- Chama-se Xana? Não a conheço, deve ser nova cá na zona. Sabe, mais cedo ou mais tarde todos por cá passam.
- Foi-se embora?
- O que estava à espera? Muita sorte teve voçê, se fosse outra tinha-o deixado lá estendido e fugido a sete pés.
- A minha carrinha?
- Essa não foge, não se preocupe. O reboque que voçê pediu levou-a para a oficina Central. “Central” é o nome e fica ao pé da paragem das camionetas o que lhe vai dar muito jeito. Tenho comigo um cartão que eles me deram para lhe entregar.
O Zé não conseguiu perguntar pela casa de Xana, pelo quarto de Xana, pelo corpo de Xana. Queria acreditar que tinha salvo Xana das balas assassinas da polícia, queria ser o herói daquela história onde não estava sozinho.
Está sozinho, sentado junto a uma janela, no expresso para Lisboa. Fez-se noite. Foi de táxi para a Damaia. Na mesa da cozinha, entre duas torradas e um chá, faz as contas possíveis. Só o transporte da carrinha é um balúrdio. E ainda foi um favor, teve de convencê-los a trazerem-na no dia a seguir, logo de manhãzinha. Amanhã irá à oficina do André para saber dos estragos.
A noite passou-se. Sem sonhos, visões, ilusões ou qualquer outro tipo de alucinações. Acordou vazio. Sentiu falta de uma mulher que não existia. A mulher que não só o ajudou, mas também lhe ofereceu cama, o corpo e que o fizera sentir-se vivo, era um truque, uma partida do subconsciente. Não teve vontade de tomar o pequeno almoço em casa. Apetecia-lhe o leite quente em casa da Xana, da Xana que inventou.
Hoje irá olhar para a sua carrinha e ouvir o André confessar a sua impossibilidade para efectuar a reparação:
- Teria que correr todas as sucateiras de Lisboa e arredores. Sem contar com o trabalho de bate chapas. Ficava-te uma fortuna Zé. E ficarias sempre com uma carrinha velha, nunca irias recuperar o dinheiro, nem mesmo que a vendesses.
- Eu não queria vendê-la, só queria vê-la inteira novamente. Percebes?
O Zé carregava aquela interrogação de todo o seu sofrimento, a mágoa de perder a última coisa de que realmente gostava.
- Eu percebo Zé, mas ouve o que eu te digo. Por metade do preço do arranjo da carrinha, consigo-te um Ibiza a gasóleo de dois lugares quase novo, impecável, deixas de vir cá tantas vezes.
E Sorriu, o Zé não:
- Diz-me tu um número para eu pensar no assunto.
- Vais ver que não te arrependes!
O Zé saiu da oficina com um número, um número demasiado grande para as suas economias, ainda assim possível de se conseguir com umas horas extraordinárias. Foi o último dia desse ano em que trabalhou oito horas. Todos os outros tiveram doze ou mais horas de rotina vigilante. Começou a apanhar tudo. Chegou a não despir a farda de segurança, adormecendo no sofá agarrado a uma carcaça com manteiga. No princípio o café bastava para o manter acordado. Com o acumular do cansaço precisou de outro tipo de ajudas. Não precisou ir muito longe para conseguir o que pretendia. Mesmo ali, no café da rua, local onde um conhecido vendedor de substâncias ilícitas lhe recomendou anfetaminas:
- Olha que eu não quero ficar maluco e a ver coisas. Eu só quero é aguentar o serviço acordado.
- É por isso que não te estou a vender outras merdas. Mas tens de ter juízo. Toma isto com calma, “meio” antes de ir trabalhar deve chegar.
Olha que eu não te quero ver como os outros que cá vêm, tu não és desses.
- Então sou de quais?
- Não sei, és diferente.
Realmente aquilo ajudou. Principalmente naquele último mês, o mês que faltava para ter o dinheiro suficiente.
O Zé perdeu o apetite e deixou de se cuidar. Não fosse a sua disposição para aceitar tudo tê-lo-iam despedido. Nele, a farda parecia pendurada num cabide. Foi essa imagem que ele apresentou ao André quando lhe estendeu a mão com o cheque.
O Ibiza comercial, de dois lugares, era branco. Esperou duas horas até conseguir um lugar de onde o pudesse vigiar da sua janela.
No dia seguinte pegou no carro e dirigiu-se para a ponte em direcção ao sul. Foi sem razão aparente que se jogou para fora do veículo em andamento. As pessoas que viajavam atrás dele ainda tentaram ajudá-lo. Não o salvaram mas foram a tempo de o ouvir:
- Onde estou? És tu Xana?

(Fim)

P.S. Um grande abraço para a minha irmã TiTá, para o Adriano e para o PB. A voçês as minhas desculpas pelas ausências, silêncios, pela falta de resposta. Por favor não a confundam com falta de respeito. O desejo de um bom ano para todos voçês.