2012-01-24

Que seca!




Que seca! Olho para o outro lado da rua e vejo o jornaleiro que já não existe, a banca que desapareceu e os jornais que já não tentam desprender-se dos elásticos ausentes.
Que seca! O velho café fechou e o novo que lá abriu, LCD na parede, cadeiras com ergonomia assegurada, visualmente moderno, pop, ou lá o que seja, deixa-me um sabor estranho nos olhos, talvez o perfume que me arranha a pele.
Que seca! Diz a minha filha quando lhe infernizo o juízo e perante uma qualquer justificação parva exclama, LOL! E eu sem mais digo-lhe, SOS! O quê pai? SOS! Tu estás bem pai? Que seca tentar estar actualizado, perceber o que há-de ser sempre igual com vocábulos diferentes, vocábulos inventados na fobia juvenil de tudo codificar, de tudo diferenciar. E eu que tanto diferenciei sinto-me perdido por tudo me parecer igual. Fogo pai não percebes nada! Sim filha, eu também gosto de ti. Um sorriso teu que vale por mil, um ligeiro beijo…Pai tu picas! Eu sei, amanhã eu corto-a!
Que seca! O olhar provocador do cão enquanto me mija o pneu do carro. ÃO! ÃO! Este carro pode ser teu mas entre aquela curva da estrada e este sinal de passadeira tudo tem de cheirar a mim. Eu não me importo que me mijes a roda do carro, o que eu não gosto mesmo é essa perna alçada, esses tomates à mostra, do género, “Olha o que eu tenho para ti!”.
Que seca! Estou sentado e tento concentrar-me, as letras fogem-me e eu teimo em não usar os óculos para ver ao perto, para ler, para os detalhes…estou-me nas tintas para os detalhes! Olá Paulo! Posso sentar-me? Claro, meu irmão, estava mesmo farto de tentar ler o jornal. Nem sei porque é que ainda compras essa treta.
Que seca! Há obras por todo o lado! Agora que me dizem não haver dinheiro só vejo é máquinas de asfaltar, “Estradas da Planície”, que imaginação! P…Que os Pariu! Já nem dinheiro têm para fazer o resto até Beja! Que seca!
Este verão irão aparecer cartazes apelativos, “Sinta as pedras a bater no seu pára-brisas, sinta os fantasmas das árvores abatidas, sinta as camadas de asfalto fazerem-lhe cócegas nos pés, tudo isto que fazemos fazemo-lo para si, visite-nos, estacione a sua caravana junto das dezenas de outras que bordejam a praias, muro de casas sobre rodas em nome da mobilidade, da liberdade…” P…Que Pariu a liberdade! Que seca!
Que seca! Escrevo estas palavras como um desabafo…Sou um falso…Não digo o que me vai na alma, apenas o que me incomoda, o que perturba a minha epiderme sensorial. Que seca, o copo está vazio, são vinte e três horas e apetece-me fumar um cigarro.
Este Inverno falta-me um pouco de chuva…Que seca!

2012-01-16

Um conto

Jonas é um homem já feito. Feito porque foi feito, feito porque assim se mantém. Poder-se-ia dizer que depois de feito só lhe bastava crescer. Jonas tornou-se “Jonas” porque João não lhe bastava, nem aos amigos que assim o baptizaram.
Jonas nasceu numa família pequena, numa casa pequena, numa terra pequena, num país pequeno, Jonas também é pequeno, mas só de tamanho, mas disso não tem culpa assim como de tudo o resto.
Jonas andou na escola mas não estudou, teve empregos mas não trabalhou, mas quando sonhou partiu. Esteve em África quando todos se vieram embora, foi para o Brasil quando o Brasil era favela e fez-se pescador quando voltou a Portugal.
Jonas teve um barco pequeno, pequeno foi o barco mas grande foi o amor que teve por ele. Jonas que é um homem já feito disse que tinha sido feito para o mar. Foi o mar que lhe levou o barco e por pouco também a vida. Maldito dia em que um barco maior não o viu e numa madrugada enevoada o entornou para a água.
Benditos os braços de Jonas que lhe despiram a roupa, lhe tiraram as botas e lhe remaram o corpo para terra.
Jonas, homem já feito, tornou-se mendigo, habitou-se a pedir, trocou o mar pela terra e vagueou sem destino à espera de outro sonho, Jonas queria ser poeta.
Mas Jonas não sabia escrever, ou já não se lembrava, sabia no entanto as palavras que descreviam a vida do homem que era. Jonas recordava da mesma maneira que os poetas inventam.
Jonas comia pouco e bebia o que podia. Jonas tinha uma tenda por detrás do pinhal.
Jonas trocava poemas por sandes, frases por cigarros, filosofias por um copo.
Hoje Jonas partiu…Não morreu! Partiu apenas. Deixou a tenda e o sonho da poesia. Diz quem sabe que o viu a caminho do Algarve, a pé, pela estrada que sai do Cercal.
Jonas, homem já feito, não para de sonhar…

2012-01-04

Argumento de “Uma, muito pequena, curta-metragem”

I

Esta noite fui cedo para a cama.
Poderá esta frase resumir o espírito de uma Nação?
Não!
A Nação não foi cedo para a cama!
A Nação acredita no milagre fatalista!
A nação desconhece o futuro que lhe preparam!
A passagem de ano revela-se como mais uma noite de copos.
A passagem de ano revela-se comemorativa,
Como se algo houvesse para comemorar…
Para quem tem fome, a fome perdurará!
Para quem não a tiver, a ausência será constante!
Depois da fome o próximo passo será a guerra!



II

Não sonho esperanças vãs,
Não anseio promessas falsas.
Os começos já os conheço,
Episódios que ciclicamente me repetem.
As luzes da minha rua estão gastas,
Pequenas estrelas humanas,
De duração programada.
É esse o caminho que me leva ao quarto.
As sombras do que lá existe,
Dizem pouco ou pouco têm para dizer.
Afinal de contas,
As sombras não falam,
Balbuciassem elas as palavras necessárias,
E contariam histórias.
Porque é de histórias que eu falo,
Porque de histórias são feitos os meus sonhos.



III

Sou normal,
A corrente eléctrica chega a minha casa por fios,
A minha secretária é de madeira,
De madeira é a lenha que queimo na minha lareira.
E eu que sou normal,
Não me sinto assim.
Olho para o fogo,
E lembro-me do fogo,
Das palavras poéticas,
E do terror da torrefacção.
Dos finais que todos os dias o são,
Dos começos que os acompanham.
Sou normal na minha maneira de o ser,
Sinto que sou o que sou.
Senta-te e escreve a verdade que te ensinam…
…Segue leve….



IV

Escrevo,
E ao escrever ouço-me.
Penso em mim como uma voz,
Um reflexo do que vi,
Do que vejo.
Sou um pedaço orgânico,
Pedaço entre pedaços,
Reflexo orgânico de desejos,
Que não sendo meus também o são,
Reflexo de frustrações,
Que não sendo minhas,
São as minhas confissões.
Reconheço-me enquanto escrevo,
E não preciso sofrer,
Para ver que o que escrevo,
É o colectivo a morrer.



V

Finge-te,
Homem ou coisa,
Algum lugar ou nenhures,
Finge-te a seco.
Não te escondas do que finges.
Finge-te mas não te enganes.
Não te escondas em substâncias.
Abre a janela do quarto,
Não tenhas medo do frio,
Da solidão ou vazio.
Homem que é Homem é isso,
Essa coisa complicada,
Que chora por não ser nada,
Quando é tudo o que precisa.
Finge-te parvo ou incerto,
Mas não finjas que não sentes,
Nem desprezes quem está perto.

Os dias estão bonitos!

Os dias estão bonitos. Talvez por estarem tão bonitos deixaram-me mais atento. Que melhor desculpa poderia eu ter para ouvir diálogos alheios?
À portaria da fábrica, por volta das oito horas, juntam-se uniformes de trabalho num mesclado cinzento. São os “empreiteiros”, pessoal que veio de longe, de perto, de qualquer lugar onde falte emprego, a construção da nova unidade assim o exige. Os quartos da região estão todos ocupados, os andares arrendados, a espanhóis, a imigrantes do leste, a brasileiros, aos africanos de nascença ou de descendência, a portugueses vindos do norte, a gente de sul que deixou de poder trabalhar em Espanha, na Holanda, em qualquer outro lugar, onde o dinheiro ganho de forma sazonal, ia dando para a despesa.
Formam-se grupos, esperam-se os encarregados, os responsáveis pela segurança, aguardam-se chamamentos que permitam a entrada ordenada pelo torniquete. No meio desde burburinho tento entrar despercebido, sigo um atalho de corpos, espero a minha vez e sigo atrás de um pequeno grupo. O passeio construído em “I’s” de cimento é ladeado por vários metros de relvado durante os duzentos metros que separam a portaria da rede das fábricas. Não costumo seguir, ordeiro, na corrente que se forma até à segunda entrada, geralmente entretenho-me a fazer gincanas.
Mas os dias estão bonitos, frios mas bonitos e convidam-me a passos lentos. Sigo aquele pequeno grupo, quatro homens, uma mulher, a responsável pela segurança, mulher nova com menos de trinta anos. Um dos homens, moço novo com pouco mais de vinte anos, queixa-se com o frio do quarto, “F…tu tinhas dito que ias comprar a m… dum aquecedor”, o mais velho, moço de trinta e poucos, responde-lhe à letra “Porque que não o compras tu c…? Sais á noite para mamar mas para comprar o c… do aquecedor tá quieto!”. O outro tentou responder qualquer coisa que o vento abafou e o mais velho continuou, “Eu se tivesse guita também andava nos copos, mas f…., se vou para o quarto já não saio! E tu não precisas de aquecedor meu cabrão, tu cagas-te como ò c….!”. Riram-se todos, eu também me ri...por dentro…
Houve troca de acusações até que o mais velho fez valer a experiência “Meu, eu na paragem dois mil só havia um dia que não vinha bêbado e era à sexta feira!”. Virei para o lado direito, pressenti-os e lancei-lhes um último olhar…Cabo Ruivo 1983!....o que a memória vai buscar…
F… os dias estão mesmo bonitos!