2013-07-21

10 de Junho, o dia de Portugal que ninguém viu

A plateia aguardava ansiosa pela chegada dos carros topo de gama que traziam os altos responsáveis da nação. Muitos dos que se deslocaram a Évora traziam esperanças, esperanças de poder apupar, gritar, esbracejar, mostrar indignação e desespero a todos aqueles responsáveis políticos, pessoas sérias e intocáveis. Ao longe ouviram-se sirenes, prelúdio do cortejo esperado, sirenes de pressa que mandam afastar, afastem-se que eu mando e vocês só atrapalham. As sirenes aproximaram-se espalhando ao desbarato decibéis insensíveis, arredando da frente vozes incomodas, pedindo bandeiras no ar, viva Portugal, vivam os mortos e os Impérios e os Impérios que nem chegaram a nascer, viva eu que aqui venho e estou aqui para vos ajudar, com a minha presença, a minha compreensão, a minha explicação fácil de avó paciente que vos entende desde que estejam calados. A plateia aguarda ansiosa que o chefe de estado saia do automóvel negro, negro das nuvens que pairam sobre Portugal, negro das expectativas que nos são permitidas, negro das olheiras de quem não dorme, negro das marcas na pele que ficam no interior das casas quando o dinheiro falta. A porta abre-se num abrir solícito de empregado de hotel de luxo, reverência devida a tão alto cargo, o corpo dobra-se e desdobra-se como um boneco teimoso que teima em ficar hirto numa posição que se pretende recta, demonstração de inflexibilidade, da força perante o caos, da razão perante o desnorte, o actor que representa um papel, que se desfaz numa credibilidade ilusória perante uma plateia ansiosamente apática dividida entre a revolta e a veneração que nos é característica. Os passos são perfeitos, milimétricos, em direcção à tribuna aparentemente obediente de altos dignitários, dirigentes políticos, militares graduados, homens de obediência institucional, amarrados de cargos com fardas que reflectem o grau de silêncio. Do público nascem rumores que os homens da segurança tentam descortinar. Homens da segurança, de segurança sectária, dirigem-se dissimulados para junto das palavras que incomodam preparados para intervir, servir de colete protector a frases contundentes. Ouvem-se apupos, um mal-estar de hospital, quando uma operação falha, quando o médico está presente e falha nas respostas. O presidente mostra-se indisposto, transparecem rugas de irritação, como disfarçar esta insatisfação perante um homem eleito, o homem de todos os portugueses, isto é uma democracia porra, a porra algarvia não saiu, assim como não saiu tudo o resto pois a minha imaginação ficou-se pela imagem ofendida do alto dignitário. Entretanto os militares perfilados, de armas descarregadas nas mãos, pensavam nas namoradas para evitar pensar nos ordenados. As botas engraxadas, o orgulho engraxado nas derrotas coloniais que eles não conheceram, reféns da Bósnia, do Afeganistão, de todas as missões humanitárias com mandatos internacionais, pactos, alianças, que não chegam para pagar a renda de casa nem para livrar o país da miséria. E neste dia da Nação a que alguns chamam da raça sem especificar qual não vá descobrirmos mais do que aquelas que seriam convenientes a mentes tão puras, o presidente fala da agricultura, das cebolas, das cenouras, das alfaces, esquecendo propositadamente os nabos. Fala de como as coisas crescem bem nesta terra abençoada por nutrientes divinos, provavelmente parentes directos dos nutrientes que fazem crescer os jardins do paraíso, de garantia assegurada por alguma nossa senhora disponível para ouvir da nossa fé. Da plateia continuam a ouvir-se palavras pouco simpáticas, dirão mais tarde que ofensivas à dignidade e que justificaram uma intervenção musculada com prisões e identificações para posterior caução judicial. Perante tal devaneio o discurso vira-se para o mar e o mar tão longe de Évora tão longe de nós que arrasamos a frota pesqueira, os estaleiros, os…enfim sempre podemos fazer surf, exportar as ondas em pequenos bilhetes-postais que já não se vendem e colocar uma população inteira a servir de guia a jovens aprendizes e profissionais bronzeados dos países ricos. Mas o discurso não acalma as hostes discordantes que se envolvem num confronto físico com as autoridades e com apoiantes incondicionais do nosso Chefe de Estado. Perante a violência dos confrontos gera-se o pânico fazendo com que se percam crianças, caiam idosos, desmaiem senhoras de bem, entrem em trabalho de parto mães que irão poupar em despesas de hospital mas talvez não em agências funerárias; e eu vejo-me no meio de tudo aquilo tentando chegar ao Sr. Silva, gritando-lhe a culpa que ele esqueceu, levando bordoadas da polícia, sentindo o sangue escorrer-me pela boca, pelo nariz, o corpo amortecido da dor, o corpo que abandono quando o vejo preso pela segurança presidencial, farrapo enxovalhado no chão; de corpo abandonado persigo aquele homem tão íntegro tão recto, persigo-o como um fantasma e quando finalmente o vejo, olhos nos olhos, os meus vermelhos de raiva, os dele brancos de desprezo anacrónico, acordei…Tudo não passou de um pesadelo. Ninguém tem culpa do que sonha nem tão pouco queria sonhar coisa mais degradante. Ainda bem que nada disto aconteceu, tudo está calmo e à data que escrevo isto esperamos ansiosamente que o responsável máximo da nação tome uma decisão. Esta será anunciada à noite pelas 20H30m. É bom saber que ainda alguém vela por nós e com o beneplácito da Nossa Senhora…Amém! 

2013-07-19

As Férias e a Leitura

Sinto-me cansado, olhos doridos de longas horas, debruçados em ecrãs, papéis que requerem atenção, números que de tanto se apresentarem chegam a não ser reconhecidos; e eu prometo-lhes descanso, poucos jornais, mingua de televisão, telemóvel em modo de emergência, prometo-lhes sol, água salgada, vistas despreocupadas, prometo-lhes o que não posso cumprir. Assim que chega a altura de partir, fazer as malas, escolher camisolas e roupas informais (não faria sentido levar a bata ou o fato-macaco) a minha preocupação é centralizada, que livros levar para ler? Todos os anos recupero os hábitos de leitura nas férias; todos os anos eu sei que esses hábitos irão perdurar durante alguns meses de esforço metódico em que a disciplina tenta sobrepor-se ao cansaço de olhos martirizados por esforços tardios em horas pouco recomendáveis. Enquanto escolho a literatura adequada para um repouso, que inclui também a minha sanidade mental, recordo-me de todos aqueles livros que prometi ler ou que comecei e não consegui acabar e invariavelmente opto por não os levar. Este ano não foi excepção. A escolha foi aleatória e recaiu numa sugestão da revista Ípsilon suplemento do Público que costumo ler para manter contacto com tendências culturais, sejam elas livros, CD´s, filmes ou qualquer outra actividade que eu possa aproveitar. “Lionel Asbo” é um livro corrosivo de um humor que tanto faz chorar como rir (o seu autor é Martin Amis). Sendo o autor Inglês era isso que se esperava do humor. Ri-me do óbvio e estava escrito e do que ele me fez pensar sendo certo que até de mim me ri apanhado nas armadilhas do autor. Ri-me da minha excitação em saber se o miúdo de quinze anos que confessa no começo do livro numa carta dirigida a uma conselheira sentimental/sexual de um tablóide Inglês   “Querida Jennavieve, ando a ter um caso com uma mulher mais velha. Ela é uma senhora de alguma sofisticação e constitui uma refrescante mudança em relação às adolescentes que eu conheço (como a Alektra por exemplo, ou a Chanel). O sexo é fantástico, e penso que estou apaixonado. Mas há uma complicação muito séria e é esta: ela é a minha Avó!” é apanhado pelo tio que cuida dele (Lionel Asbo), rufia de subúrbio, para quem a mãe precisa de protecção pelos seus excessos sexuais e que não teve problemas em fazer desaparecer (vendeu-o  ou matou-o? Tanto faz)um colega de escola do seu sobrinho quando descobriu que também ele lá ia a casa. A história do livro desenrola-se tendo sempre como questão subliminar a traição do sobrinho ao tio o que nos faz pensar sobre as moralidades suburbanas. Poderia dizer que o tio tem pouco mais de vinte anos e a avozinha  quarenta e cinco, que Lionel está quase sempre preso como “revendedor” de material roubado ou devido a inúmeras cenas de pancadaria que ele leva como estimulo de vida (uma espécie de ida ao psicólogo), que tem mais seis irmãos, a falecida mãe de Des (o seu sobrinho protegido) e cinco irmãos (com os nomes dos Beatles, incluindo o que não se tornou famoso), que ganhou a lotaria no valor de cento e quarenta milhões de libras o que faz rodar a nossa atenção para sociedade  inglesa materialista e de valores duvidosos. Enfim o livro é uma delícia. Acabei-o de um trago e entreguei-me à tarefa sempre difícil de ler Lobo Antunes, “Sôbolos rios que vão”, livro comprado antes de abalar num ímpeto compulsivo perante um autor velho conhecido e que me faz as vezes de uma ida ao psicólogo (ele há-de perdoar-me pois sou um leitor assiduo de muitas das suas obras)  . Sabia ao que ia e precisava deste tratamento para me confirmar curado. Foi também sobre um rio que a minha mãe abalou, também de cancro no cólon. Mudam as memórias, delicias narrativas que nos fazem reviver toda a vida de um homem nos seus últimos dias, sangue encharcado em morfina querendo sentir dor para se sentir vivo, de olhos postos no “pingo no sapato” médico que lhe prescrevia a medicação, a dose de anestesiante, o caudal de soro, as ordens para os enfermeiros. O livro dura de 21 de Março a 4 de Abril e eu sei que é verdade, que as pessoas se  apagam num fósforo, eu sei que sim. Ainda deu para começar a reler “Os Maias” do Eça, os tão odiados “Maias” da minha juventude escolar que descubro agora com outros olhos através de uma edição especial e comemorativa do semanário Expresso. Comemorativa do semanário (faz quarenta anos) e da primeira edição da obra (125 anos). Deixo-vos com este pequeno excerto, quem sabe a propósito de tão dúbias e poderosas alianças ultramarinas (ainda à pouco nos mandaram fechar fronteiras a um presidente): “Era como uma tela marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa em céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de cor e luz, os episódios fugitivos duma pacata via de rio: às vezes uma vela de barco da Trafaria fugindo airosamente à bolina: outras vezes uma galera toda em pano, entrando num favor de aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancolia de um grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desaparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante os dias, no pó de oiro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglês…”.
Que o fim das férias não me traga o fim da leitura pois esta faz-me tão bem…