2014-03-31

Abril #1 (Quarenta anos de ilusões)

A presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, avançou com a hipótese de mecenato como solução para custear algumas das iniciativas das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril. A notícia é avançada pela edição desta quinta-feira (13 de Fevereiro) do jornal «Público», que cita fonte do gabinete da própria Assunção Esteves. 

Entre as iniciativas avançadas por Assunção Esteves para as comemorações do 25 de Abril, está uma exposição de chaimites junto à Assembleia da República, ornamentadas com cravos criados pela artista plástica Joana Vasconcelos. Seria, aliás, para esta iniciativa que se destinaria o mecenato. A exposição de chaimites é já uma segunda hipótese. A primeira seria uma cobertura para a fachada do edifício da Assembleia da República. Assunção Esteves recuou nesta hipótese, por concordar que teria custos muito elevados. 

A escolha da artista já está a originar celeuma. Há quem a questione, por temer ser alvo de críticas por parte de outros criadores. 

Assunção Esteves quer chegar a um consenso entre as bancadas sobre a forma de assinalar o 25 de Abril e foi entretanto criado um grupo de trabalho com deputados de todas as bancadas. Nuno Encarnação (PSD), João Rebelo (CDS), António Braga (PS), Miguel Tiago (PCP) e Pedro Filipe Soares (BE) reúnem esta quinta-feira com a presidente para discutir o assunto.
http://www.tvi24.iol.pt/503/politica/25-de-abril-assuncao-esteves-comemoracoes-patrocinios-parlamento-tvi24/1537042-4072.html


Foi esta a notícia que me levou a este projeto; “Financie você mesmo o seu 25 de Abril”, “Seja o mecenas da sua revolução, o 25 de Abril é seu”, “Acorde para a vida e mexa-se, se não for você a comemorar ninguém o vai fazer por si”, numa versão hard core “Porra, se estás fodido junta-te á maralha e manda-os para o caralho! Tens o abril todo por tua conta!”.
Como se percebe o título é o que menos interessa, o importante é mesmo a intenção e esta resume-se melhor quando se explica, embora pareça um contra censo. Por esta altura estamos perto de recuperar a nossa liberdade, a “troika”, qual exercito invasor (lembremos a convenção de Haia que obriga os ocupantes de um país a alimentar a respetiva população), cansou-se de nós, pouco mais temos para dar (os juros que iremos pagar e os que já pagámos tornaram-nos uma colónia, um território dependente) e os frutos que ela (e os famosos mercados, e porque não falar da ganância, afinal o que são os juros?) semeou, durarão vinte anos, na melhor das hipóteses (hipóteses baseadas em premissas irrealistas, crescimentos alucinados e défices que só se cumprirão sem saúde e sem educação, na prática, sem estado social). Pelo caminho vamos a votos para o parlamento europeu, aquela coisa lá longe de que toda a gente fala mas da qual ninguém sabe nada, ou quase, de vez em quando lá nos apercebemos que são eles que fazem as regras. Bom, com todas estas dificuldades nada mais natural do que comemorar de uma forma económica, vulgo barata, o dia que nos trouxe a liberdade. Se a liberdade custa dinheiro e esse nos falta, comemoremos então a liberdade perdida sem o dito cujo. Comemoremos com imaginação, com protesto, com demagogia, com ironia, com tudo o que nos vier à cabeça, desde que não custe dinheiro. A senhora Assunção, presidente da Assembleia da República, numa boa vontade desmedida e manifestamente preocupada com uma comemoração que lhe é cara e à qual ela deve a reforma com pouco mais de quarenta anos, levando o seu lugar de presidente como dever cívico, ainda quis arranjar financiamento, do género, “há para ai algum saudoso do sonho revolucionário disposto a gastar uns trocos? É que até fazia jeito!”, mas parece-me que essa não é a solução. A solução terá de ser individual e das vontades individuais se chegará à vontade coletiva, com ou sem dinheiro, porque ainda há vontades que não se pagam!
A minha comemoração vai durar o mês de Abril. Vou comemorar o mês de Abril lendo o antes, o durante e o depois de Abril, dessa leitura vou deixar marcas nesta página social e no blogue onde escrevinho algumas palavras. Reflexões, textos perdidos, poesia, tudo o que eu considerar interessante e comemorativo vai ser ai vertido com a satisfação de quem cumpre uma promessa, uma missão, missão de pouco impacto, eu sei, mas uma missão higiénica, que durante este mês, de vãs promessas governativas, me vai levar numa viagem de memórias. Dizia um filósofo de que eu não me lembro o nome (nem sequer se era filósofo), que a história é a procura de padrões que nos ajudam a prever o futuro e porque não, a aceitá-lo de uma forma mais ativa. Pessoalmente espero que este projeto me coloque em perspetiva, que esta reflexão me faça ver outros rumos e uma esperança que todos os dias é corrompida pela incoerência das perspetivas, estamos tão bem e tão mal ao sabor das marés, das eleições, da conveniência para os mercados, da hipocrisia (do Grego hypocrisia forma poética de hypócrisis, desempenho de um papel no teatro, dissimulação) de quem nos governa e de quem nos quer governar.

Nota: este texto foi escrito segundo o novo acordo ortográfico… por preguiça, porque estou farto de lutar com o corretor ortográfico e porque se Almeida Garrett escreveu “abhorreciam”, “systema” ou “desharmonia”, palavras que não aprendi, admito que quem ler este texto daqui a cem anos também se irá espantar com a ortografia aqui plasmada.

2014-03-09

XI (De o livro dos medos por Paulo Guerreiro)

XI
Cinza.
Ao longo da linha,
Cinza.
O trajecto cinzento,
O corpo pequeno
E a alma um pouco mais escura.
As ruas que deixam de ser,
Ruas,
E o passeio que nos abriga,
Cada pedra um amigo,
Cada amigo um desejo.
A idade da loucura foi-se,
Foi-se.
Eu fiquei mais velho,
Mais velho em tudo o que toco,
Mais velho tudo o que me toca.
Procuro o isqueiro e acendo,
A vela,
A luz que não é um interruptor,
Uma luz sem dor,
Sem electricidade.
A música também pode ser,
Isso,
Algo sem dor,
Não postiço.
Despi-me, da roupa,
De tudo.
Mesmo assim não estou nu,
Apenas cru,
Carne viva, ainda em sangue,
O resto que sobra,
Quando a vela se apaga.
Cinzentas as imagens,
Como se a cor só fosse isso,
Uma linha entre o preto e o,
Branco,
Como que o branco só,
Fosse cor,
E tudo o resto,
Amor!
Já não me deslumbro.
Tenho medo.
Tanto que eu queria,
Que tudo fosse mais cedo,
E amanhã outro,
Dia.
Cinza
Caiem-me nas mãos,
Os restos,
Da fogueira,
Do fogo quando nasci.
Alguém que me agarra,
Enfermeira,
Outras mãos de onde bebi.
Meu Deus!
Tudo tão cinza,
O rectângulo que também,
É
Prisão,
Portugal,
Nação.
Valha-me Deus!
O sonho cinza da cruz,
E Jesus,
E Eu.
E o Cristão,
E o Judeu,
E o Muçulmano,
Que Deus me deu,
Ou vendeu.
A Ásia de Budas distantes,
Confúcios vermelhos,
Bordados,
Toda uma seita que me justifica.
O mar ali tão perto,
E eu longe a afogar-me,
Numa terra escura e espessa,
Lama de lama,
Terna,
Mistura,
E eu à procura.
Cinza,
As minhas mãos estão cheias,
De cinza,
E eu cheio das minhas mãos,
Uma de cada lado,
Numa cadeira e eu sentado.
Sobre mim tudo cai,
O pano que não tem cor,
O céu despido,
O corpo velho com dor.
Cinza,
Porque tudo o resto é

Cinza.