2015-05-09

Os segredos do Jorge

A noite tem segredos que não são dela, são nossos. Por vezes assusta-nos revelando-os. Será talvez a escuridão que transforma a sua pálida luz em brilho ofuscante, quase insuportável. Nessas ocasiões sentimo-nos expostos, nus. Uma nudeza crua que nos revela o interior ensanguentado. Podemos então chorar mas não é um choro de ocasião, é um carpir de fingimentos acumulados, fragmentos de histórias passadas, histórias às quais não conseguimos escrever um fim. São essas histórias que fazem a noite tão interessante, o sal que tempera a sua voluptuosidade. Quem não se descobriu na noite? A manhã, pelo contrário, é uma esponja de efeito anticéptico, absorve a nossa sujidade interior e elimina-a deixando apenas restos de nós. A cara cheia de rugas, os olhos inchados, a pele pálida e gordurosa, os músculos flácidos, os pulmões ressequidos, a vergonha do que mostrámos sem querer.
O Jorge foi deixando de sair à noite. Já não suportava o fingimento matinal, o voltar a ser o que não era, o que não queria ser. O Jorge desistiu de todos os sonhos. A escrita morreu no casamento, a pintura no primeiro filho, a música no segundo, quando todo o tempo de criar se acabou, finado entre o trabalho na fábrica e o cansaço da alma. A noite assusta-o. Por vezes, confrontado com convites irrecusáveis, cede a contragosto com a certeza do arrependimento, também ele certo. O susto persegue-o sem que ninguém se aperceba. Longe vão os tempos da recriminação. Não sabes beber, bateste outra vez com o carro, não te lembras do que fizeste, a vergonha do desconhecimento, versões múltiplas do seu medo.
Começava sempre da mesma maneira. A promessa de ser diferente estava condenada ao fracasso. Eterno fracasso, antecipado, anunciado, desde logo aceite como inevitável. O primeiro embate junto da mesa onde se acumulavam os pratos e os copos. Os copos que voltariam a encontra-lo, noutras mesas, balcões, superfícies planas que lhes permitissem a verticalidade. Os copos que se encheriam de diversas bebidas, de diversas percentagens, 5%, 14%, 30%, 50%, percentagens que subiriam e desceriam ao sabor da oportunidade, da companhia, da conversa, do desafio. No fim o mesmo medo, o vazio, a sensação vertiginosa do abandono, sozinho ou acompanhado sempre o mesmo abandono, o seu abandono.
Hoje o Jorge saiu á noite. Não fez promessas. O Jorge que desistiu dos sonhos escreve para si, toca para si, pinta para si e sente-se bem consigo. Não lhe apetece sair mas a noite é especial. Alguém que parte, que se despede, um companheiro de lutas, de desilusões. Perante estes termos seria de esperar um receio incontido, um desnorte descontrolado. Mas o Jorge já não tem ilusões. O Jorge morreu por dentro. No interior do seu corpo o sangue já não tem a mesma cor. As histórias inacabadas tiveram o seu fim. Por esse motivo o Jorge saiu descontraído, bebeu descontraído, despediu-se controladamente e foi-se deitar sóbrio.

A noite deixou de ter segredos para o Jorge e as manhãs passaram a ser todas iguais.

Deus queira que o Jorge não se canse de si...